domingo, 21 de janeiro de 2018
POESIA = Gregório de Matos
Senhora Dona Bahia
"Ninguém
vê, ninguém fala, nem impugna,
e é que, quem
o dinheiro nos arranca,
nos arranca as
mãos, a língua, os olhos."
"Esta mãe
universal,
esta célebre
Bahia,
que a seus
peitos toma, e cria,
os que enjeita
Portugal"
"Cansado
de vos pregar
cultíssimas
profecias,
quero das
culteranias
hoje o hábito
enforcar:
de que serve
arrebentar
por quem de
mim não tem mágoa?
verdades direi
como água
porque todos
entendais,
os ladinos e
os boçais,
a Musa
praguejadora.
Entendeis-me
agora?"
GREGÓRIO DE MATOS
Salvador-Ba = 1636-1696
H U M O R
P I A D A S
Cena rápida. Conversa entre mulher e marido:
Mulher:
- Amor, você quer me fazer feliz?
Marido:
- Sim, sempre!
Mulher:
- Então me beija em três lugares diferentes!
Marido:
- Claro! Onde, meu bem?
Mulher:
- Em Miami, Paris e Veneza...
===
Um homem assistia a um jogo futebol pela TV, mas
mudava de canal a toda hora: de esporte para um filme pornô que
mostrava um casal em plena ação.
- Não sei se assisto ao filme, ou se vejo o jogo, disse para a mulher.
- Pelo amor de Deus, assista ao filme, ela respondeu.
- Futebol você já sabe jogar...
===
A esposa se despede do marido que vai ficar 90 dias no exterior.
- Não se esqueça de me mandar notícias todas as semanas, meu amor!
- Você prefere por carta ou telegrama?
- Por cheque!
- Não se esqueça de me mandar notícias todas as semanas, meu amor!
- Você prefere por carta ou telegrama?
- Por cheque!
===
A mulher olha-se no espelho e diz ao marido:
- Estou tão feia, gorda e acabada! Preciso de um elogio...
E o marido responde:
- Sua visão está ótima!
===
O sujeito estava andando pela rua quando viu um casal brigando.
A moça correu em sua direção e gritou:
- Me ajude, meu marido já me jogou duas pedras.
O sujeito conseguiu segurar o homem nervoso e perguntou:
- Meu amigo, por que você jogou duas pedras na sua mulher?
- Porque a primeira eu errei! Respondeu o maridão.
POESIA = Gouveia Marinho
TROVAS
Saudade é flor que na jarra
do peito rasga o botão,
é soluço de guitarra,
é gemido de violão
Ama a vida intensamente,
mesmo que te seja má,
desse amor que abrasa a gente,
ama-a que ela te amará.
Não é por mera vaidade,
que fabrico trovas a esmo;
mas porque tenho saudade
de um tempo em que fui eu mesmo.
Terra que foste o meu berço
de criança, a me embalar,
na morte em sentido inverso.
Vê meu leito tumular!
O meu ser nasceu formado,
de uma complexa ironia
lá fora um ri simulado
cá dentro melancolia.
GOUVEIA NARINHO
LUIZ
TAVARES DE GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE,
1901-1983
CRÔNICA = Rubem Braga
Cafezinho
Rio, 1939.
Leio a reclamação de um repórter irritado que precisava
falar com um delegado e lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho.
Ele esperou longamente, e chegou à conclusão de que o funcionário passou o dia
inteiro tomando café.
Tinha razão o rapaz de ficar zangado. Mas com um pouco de
imaginação e bom humor podemos pensar que uma das delícias do gênio carioca é
exatamente esta frase:
- Ele foi tomar café.
A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar
com um número excessivo de pessoas. O remédio é ir tomar um
"cafezinho". Para quem espera nervosamente, esse
"cafezinho" é qualquer coisa infinita e torturante. Depois de esperar
duas ou três horas dá vontade de dizer:
- Bem cavaleiro, eu me retiro. Naturalmente o Sr. Bonifácio
morreu afogado no cafezinho.
Ah, sim, mergulhemos de corpo e alma no cafezinho. Sim,
deixemos em todos os lugares este recado simples e vago:
- Ele saiu para tomar um café e disse que volta já.
Quando a Bem-amada vier com seus olhos tristes e perguntar:
- Ele está? - alguém dará o nosso recado sem endereço.
Quando vier o amigo e quando vier o credor, e quando vier o parente, e quando
vier a tristeza, e quando a morte vier, o recado será o mesmo:
- Ele disse que ia tomar um cafezinho...
Podemos, ainda, deixar o chapéu. Devemos até comprar um
chapéu especialmente para deixá-lo. Assim dirão:
- Ele foi tomar um café. Com certeza volta logo. O chapéu
dele está aí...
Ah! fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim.
A vida é complicada demais. Gastamos muito pensamento, muito sentimento, muita
palavra. O melhor é não estar.
Quando vier a grande hora de nosso destino nós teremos
saído há uns cinco minutos para tomar um café. Vamos, vamos tomar um cafezinho.
R UB E M B R A G A
CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM-ES =
1913-1990
Ontem e
Hoje
Dentes ao Sol, Editora Codecri, 1980, pág.
288)
Ontem
Nas noites de verão, depois do
jantar, as pessoas saíam para as calçadas, cadeiras na mão. Os velhos, ou os
donos da casa, sentavam-se junto à porta. Os outros, em volta. Primeiro, os
mais chegados, parentes ou não. Depois, amigos, conhecidos, visitas ocasionais,
numa hierarquia da qual as crianças estavam excluídas. Quando as pessoas
chegavam, os donos da casa estavam à porta, à espera. Não que fosse praxe.
Simplesmente costume. Mas se os donos ali não estivessem, as conversas começava
na sala, junto com o café. Transferindo-se para a calçada à medida que chegavam
mais gente. O que interessava eram os casos de família, a educação dos filhos,
a política, a escola, os casamentos das viúvas, as árvores genealógicas, quem
fez e não fez, o filme com Tyrone Power, a Igreja condenando os ciganos que
tinham acampado na cidade, os pracinhas que iam voltar da guerra. As rodas na
calçada, às vezes se estendiam pela rua. Sem perigo. Em toda a cidade existiam
dois ônibus, trinta caminhões que transportavam leite, lenhadores e sacos de
café, oito carros de aluguel e cinquenta veículos particulares. As crianças
corriam, rodavam na roda, atravessavam a rua num pé só, brincavam de pique. Os
homens fumavam, as mulheres tomavam refresco, licor de jabuticabas ou figo. O
café era servido à chegada e quase no fim, quando o apito da fábrica soava, dez
e meia. As visitas começavam a se levantar. Ficavam um pouco de pé, costurando
rabos de assuntos, enquanto os pais recolhiam os filhos e as mães buscavam os
bebês que dormiam, cobrindo com mantas, por causa de um golpe de ar. Em quinze
minutos a rua se esvaziava.
Hoje
Nas noites de verão, ou todas as
noites, depois do jantar, o pai abandona a mesa. Ainda com a xícara de café na
mão, ele se dirige à caixa quadrada. A deusa dos raios azulados espera o toque.
Para emitir som e luz, imagem e movimento. Todos se ajeitam. O lugar principal
é para o pai. Ninguém conversa. Não há o que falar. O pai não traz nada da rua,
do dia-a-dia, do escritório. Os filhos não perguntam, estão proibidos de interromper.
A mulher mergulha na telenovela, no filme. Todos sabem que não virá visita. E
se vier alguma, vai chegar antes da telenovela. Conversas esparsas durante os
comerciais. A sensação é que basta estar junto. Nada mais. Silenciosa, a
família contempla a caixa azulada. Os olhos excitados, cabeças inflamadas.
Recebendo, recebendo. Enquanto o corpo suportar, estarão ali. Depois, tocarão o
botão e a deusa descansará. Então, as pessoas vão para as camas, deitam e
sonham. Com as coisas vistas. Sempre vistas através da caixa. Nunca sentidas ou
vividas. Imunizadas que estão contra a própria vida.
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
ARARAQUARA-SP,
1936
POESIA = ARTUR AZEVEDO
Miserável
O noivo, como noivo, é
repugnante:
Materialão, estúpido,
chorudo,
Arrotando, a propósito de
tudo,
O ser comendador e
negociante.
Tem viuvinha, a noite
interessante,
Todo o arsenal de um poeta
guedelhudo:
Alabastro, marfim, coral,
veludo,
Azeviche, safira e tutti
quanti.
Da misteriosa alcova a
porta geme,
O noivo dorme n’um lençol
envolto ...
Entra a viuvinha, a
noiva... Oh, céu, contem-me!
Ela deita-se... espera...
Qual! Revolto,
O leito estala... Ela
suspira... freme ...,
E o miserável dorme a sono
solto! ...
ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÌS-MA =
1855-1908
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
POESIA = Fernando Pessoa
Natal
O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
FERNANDO
PESSOA
PORTUGAL, 1888-1935
CONTO = Raduan Nassar
Hoje De Madrugada
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando
percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi
sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma
caligrafia rápida e nervosa; foi uma frase curta que ela escreveu, me
empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos:
"vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de
ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com
os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e
quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha
escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem
me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava
afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada;
provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia.
E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava.
Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para
dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi
preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que
eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos,
enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim
talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a
volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso
do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus
dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o
braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um
objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci
lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa
altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim
se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a
janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas
estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a
madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava
de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando
de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço
desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o
traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela
espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés
descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé,
tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele
no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do
meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me
lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início
se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me
desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei
a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça
jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os
olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das
pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não
eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se
deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou.
Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada
qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode
ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida
quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva
escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse
por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão
minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
RADUAN NASSAR
PINDORAMA-SP, 1935
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