PROSA E VERSO



ANTÔNIO PRATA
SÃO PAULO-SP, 1977


O politicamente incorreto está na moda nos meios de comunicação. (Fora deles, não, pois não pode estar na moda o que nunca caiu em desuso). Colunistas, jornalistas e blogueiros enchem o peito e, como se fossem os paladinos da liberdade de expressão, desancam os movimentos sociais, o feminismo, maio de 68, os quilombolas, os índios e tudo mais que tiver um ar de correção política ou cheire a idéias de esquerda. Tá legal, eu aceito os argumentos, mas não levantem as vozes tanto assim: não há ousadia nenhuma em ser politicamente incorreto no Brasil; aqui, a realidade já o é.
Imagine uma escola religiosa na Dinamarca. Flores nas janelas, cheiro de lavanda no ar, vinte alunos loiros, com cristo no coração e leite A correndo pelas veias, respondendo a uma chamada oral sobre o Pequeno Príncipe. Ali, o garoto que se levantar e cuspir no chão será ousado. Mostrará que a despeito do aroma de lavanda, o ser humano é áspero, é contraditório, é violento. Quando a realidade fica muito Saint-Exupéry, é importante que surjam uns Sex Pistols para equilibrar. Agora, cuspir no chão de uma escola municipal em São Paulo, diante da professora assustada que não consegue fazer com que os alunos, analfabetos aos dez anos, fiquem quietos, não tem nenhuma valentia. Quando a realidade da polis é o caos, o som e a fúria são a correção política.
O sarcasmo dirigido aos intelectuais de esquerda seria audaz e iconoclasta caso o Brasil tivesse vivido de 37 a 45 e de 64 a 85 sob as ditaduras de Antonio Candido e Paulo Freire. Se antropólogos de pochete e índios com camisa do Flamengo estivessem ameaçando o agronegócio, devastando lavouras de soja para plantar urucum e cabaça para fazer berimbau. Se durante o carnaval as feministas pusessem no lugar da Globeleza drops de filosofia com Marilena Chauí e Susan Sontag. Se a guitarra elétrica fosse banida da MPB pela banda de pífanos de Caruaru. Do jeito que as coisas são, contudo, o neoconservadorismo faz sucesso não porque choca a burguesia, ao cuspir no solo de onde brotam seus nobres valores, mas porque assina embaixo da barbárie vigente – e ri dela.
Nos EUA, o politicamente correto está tão entranhado nas relações que eles até o chamam pelo apelido: PC. Aqui, as duas letras ainda nos remetem ao tesoureiro do Collor, o ex-presidente que caiu após escândalos de corrupção e apareceu na capa dos jornais essa semana depois de ser eleito para chefiar uma comissão no senado. Enquanto não substituirmos um PC pelo outro, em nosso imaginário e nas manchetes, quem quiser cuspir no chão pode continuar cuspindo, mas deixe de lado esse tom varonil de quem está pegando touro à unha, quando não faz mais do que chutar cachorro morto.






BARÃO DE ITARARÉ (*)

 Carta Branca

 
Pobre de mim! que, em vão, ansioso, espero
Notícias de meu bem, que está distante.
O meu amor aumenta a cada instante
E cada vez me torno mais sincero

Por ser assim, bondoso e tolerante,
Assim me paga o quanto bem lhe quero.
Talvez se eu fosse um pouco mais severo,
Seria ela mais meiga, mais constante.

E há tanta moça aqui nesta cidade...
E eu tão triste, curtindo esta saudade,
Que o pranto dos meus olhos não se estanca.

Se a desalmada, ao menos, me mandasse
Uma cartinha, p'ra secar-me a face...
Se me mandasse, ao menos, carta branca...


(*) APARÍCIO TYORELLY  =  Gaúcho de SÃO LEOPOLDO  =  1895 / 1971
 Poema publicado sob o pseudônimo de Apporelly





ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE  =  1888-1963

 
Corpo E Sombra
Mantida A Ortografia Original


 
“O corpo que hoje viste, ao fim do dia,
Seguir para uma cova que o esperava
Oitenta annos viveu... E não cansava!
Quem cansou foi a sombra que o seguia...

Oitenta annos em sua companhia,
Arrastada por terra como escrava!
Só quando elle no escuro repousava,
Ella no escuro repousar podia.

Oitenta annos! Liberta, finalmente,
Agora que o meteram n’um jazigo,
Sae lésta e leve, a espairecer contente...

E parece que em jubilo profundo,
Diz: - Emfim, só! Depois de haver comtigo
Errado, quase um seculo no mundo!...”






BERTOLD BRECHT
ALEMANHA,  1898-1956



Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não morressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.







ANTÔNIO PRATA
SÃO PAULO-SP  =  1977




Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por Betão – é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar “amigos” do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
– Ô Betão, traz mais uma pra a gente – eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).
– Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?





HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886 / 1934

A Queda De Abraão


Abraão Machalon, filho de Samuel Machalon, era um tipo legítimo da sua raça. O povo de Israel jamais tivera varão mais apegado às tradições; e foi por isso, talvez, que Jeová, na sua alta sabedoria, que lhe deu por esposa a Raquel, filha mais velha de Jacó Benoliel.
No dia da união, após a solenidade, resolveu o casal Machalon festejar esse acontecimento indo ao Municipal, onde se realizava, naquela noite, um espetáculo da Companhia Lírica.
Na bilheteria, Abraão indagou:
- Quanto custa uma cadeira, cavalheiro?
- Vinte mil réis, em baixo, na platéia, - informou, seco, o bilheteiro.
Abraão pensou um instante, e insistiu:
- Cada cadeira dá para duas pessoas?
- Não, senhor; cada pessoa ocupa uma cadeira.
- E não há lugares mais baratos?
- Há, como não? Nas galerias, lá em cima. Cada galeria custa cinco mil réis.
Abraão meditou um instante, lembrando-se que não se casaria duas vezes, e que poderia, perfeitamente, fazer aquela loucura, gastando dez mil réis. Comprou, assim, duas galerias, e, meia hora depois, estava em cima, no "paraíso" do teatro, aplaudindo, ao lado de Raquel, a voz poderosa do tenor que cantava a "Tosca".
Pouco a pouco, foi o honrado descendente dos patriarcas tomando gosto pelo drama cantado. Aplaudia com prazer, com alma, com entusiasmo. E na sua exaltação, dobrava-se todo para a frente, em termo de virar pelo parapeito, e tombar lá em baixo, na platéia, espatifando-se no chão.
Olhos pregados na cena, Raquel sorria, beatificante. E sorria, deliciada, quando o marido, a aplaudir Cavaradossi no fim do segundo ato, se entusiasmou tanto, que pendeu para a frente, escapulindo da galeria, para rebentar o crânio lá embaixo, nas cadeiras. Por uma felicidade, porém, enganchou os pés nos frisos de um camarote de segunda ordem, ficando ali pendurado, a cabeça para baixo, o paletó cobrindo o pescoço.
O rebuliço no teatro foi enorme. Correrias, atropelos, gritos, palavras de terror. E no meio de tudo isso, só se ouvia a voz de Raquel, debruçada no parapeito:
- Abraão?... Abraão?... Não caias, Abraão!
E para animá-lo a salvar-se:
- Lá em baixo custa vinte mil réis, Abraão!







CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

ITABIRA-MG  =  1902-1987





A Verdade

 A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.







AUGUSTO DOS ANJOS
CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB = 1884-1914

Hino À Dor


Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam..

És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!

Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tacto
Prendo a orquestra de chamas que executas...

E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!




VINÍCIUS DE MORAES
RIO DE JANEIRO-RJ  =  1913-1980

Os Culpados De Tudo
Jornal do Brasil, 31/12/1969


 Na hora que corre, quase todas as mulheres estão fazendo regime para emagrecer (e o advérbio representa aqui algumas poucas e honrosas exceções). O ideal da forma feminina passou a ser o esqueleto acolchoado, ma non troppo, de maneira que certos ossos fundamentais aos últimos padrões da moda, como a coluna vertebral, os ilíacos, as clavículas, as rótulas e os fêmures, fiquem francamente à mostra. E obedientes a essa nova extravagância do sexo outrora considerado fraco, os especialistas, transformados em mágicos, formulam esquemas dietéticos de toda sorte: macrobióticos, hipocalóricos, astronáuticos, líquidos, o diabo. Os consultórios vivem repletos, o faturamento é altíssimo, as mulheres se sentem divinas-maravilhosas quando começam a ranger nas dobradiças. Tirante conversa de futebol e análise de grupo, é o tópico sobre que mais se fala atualmente. Fulana perdeu 15 quilos em um mês! Sicrana, imaginem só, está reduzindo um quilo por dia com a dieta líquida: que bárbaro! Viram Beltraninha depois que saiu da clínica? Como é que pode!… E os homens – eu digo: os homens! – vêem, compungidos, evaporar-se aquelas partes do corpo da mulher consideradas, desde séculos, como as mais responsáveis pela preservação da espécie.
– Ah, que saudade das mulheres de Rubens e Renoir… – suspiram os mais antropófagos.
– Eu, hein… – contestam os costureiros. – Botticelli é que era pra frente, meu filho – um louco genial, previu tudo, com aquela Primavera alucinante, magérrima! Quem gosta de gordura é detergente. A ordem do dia, queridinho, é Biafra, ouviu? Biafra!
E a carne das mulheres some, as faces se encovam, os seios diminuem, as coxas se alongam, as pontas pélvicas protuberam. Quase que as moças poderiam voltar agora à velha fórmula cediça:
– Aperte aqui estes ossos!
Meu caro amigo José Carlos Cabral de Almeida, conhecido endocrinologista – eu diria mesmo, geômetra – de nossa desvairada praça, está mais que ninguém por dentro deste novo tipo de neurose. Passa ele grande parte do seu tempo útil transformando círculos em ângulos, curvas em retas, esferas em planos, peças de rolamento em cremalheiras. Entram – ou melhor, rolam – diariamente pelo seu consultório adentro, mulheres-pipas que ele (depois de debruçar-se sobre estranhos formulários e equacionar carboidratos, proteínas e matérias graxas) devolve à sociedade transformadas em verdadeiras Verinhas Barreto Leite, em autênticas Veruschkas, capazes de sair dali direto para Paris como manequim-vedete. E elas que não arriscavam mais cruzar as pernas numa festa, sob pena de mostrar um crivo de celulite coxa acima, passam a usar minissaias e biquínis, como bem observa Paulinho Garcez, que são pouco mais que band-aids. E o moral com que elas ficam? Resolvem qualquer problema de cálculo integral, fácil.
Mas esqueci de dizer uma coisa: meu amigo José Carlos, além de endocrinologista e emagrecedor contumaz de mulheres (e homens, eventualmente, como no meu caso), é um grande pesquisador dos segredos da genética, assunto que o leva, vira e mexe, a Londres, para cursos e conferências. Eu confesso que a genética é um assunto que me fascina porque suas leis, que também são azares, formulam-se à base de um grande e poético mistério. A palavra cromossomo, por exemplo: para mim é a própria poesia. De maneira que, lidando com a genética e as glândulas do seu semelhante, nada mais natural que José Carlos Cabral de Almeida viva em plena faixa das mulheres superneuróticas. Como uma amiga sua, “uma neurótica divina”, segundo ele próprio diz, e sobre quem me contou o seguinte:
– Pois imagine que ela encontrou um homem extraordinário, com todos os ingredientes, hoje em dia tão raros, para fazer qualquer mulher feliz: rico, inteligente, boa pinta, finíssimo, ótimo caráter – enfim, um bilhete premiado. Começaram a sair juntos e aí eu a perdi por um tempo de vista. Muito bem: meses depois ela me procurou para uma consulta e eu lhe perguntei como ia o romance.
– Acabei – respondeu a “louca maravilhosa”.
– Acabou? Mas você está doida, criatura? Pois você não vivia rezando por um homem exatamente como o que você acabou de chutar?
– É… – fez ela. – Mas é que eu estava tão feliz, mas tão feliz, e tudo correndo tão bem que, de repente, me deu assim uma agonia, e eu resolvi acabar porque já não sabia mais se aquela felicidade toda era felicidade mesmo, ou era neurose…
Essa história me encheu as medidas, porque ela é bem um conto dos nossos tempos, em que os valores se invertem do dia para a noite, e as pessoas ficam realmente sem saber onde pisam e a quantas andam. Aliás, em matéria de histórias, meu amigo José Carlos contou-me outra de sua “neurótica divina” que, essa, é antológica.
Disse-me ele que durante a chamada Guerra dos Seis Dias, entre Israel e RAU, foi procurado por essa mesma amiga e cliente, e, conversa vai, conversa vem, ela começou a manifestar um anti-semitismo tão fora de seus moldes que ele, sabendo-a uma mulher inteligente e totalmente despida de preconceitos, os raciais e os outros, mostrou-lhe sua estranheza: tanto mais quanto toda sua esfera social só podia ser pró-Israel.
– Judeus… – indignou-se ela. – Tomara que morram, todos!
– Eu juro que não estou entendendo nada – disse-lhe José Carlos. – Logo você, uma mulher ultra por dentro, e ainda mais se lixando para política…
– É uma raça que precisa ser exterminada. Hitler não conseguiu, mas eu tenho fé em Deus que Nasser há de chegar lá! Eles estão aí para fundir a cuca da humanidade.
– Mas…
– É isso mesmo. Por que é que está toda gente de cuca fundida, procurando analista e engordando à toa, e aí vai para o dietista e emagrece uma barbaridade, e aí come sem parar e engorda tudo de novo – me diga? Quem são os responsáveis pela neurose de todo mundo, e a minha em particular?
– Francamente, não vejo…
– Pois eu lhe digo: são três judeus.
– …
– Jesus Cristo, Freud e Marx.
– ….
– É isso mesmo. Pau neles!





ADRIANO ESPÍNOLA
FORTALEZA-CE  =  1952

O Jangadeiro


Jangadas amarelas, azuis, brancas,
logo invadem o verde mar bravio,
o mesmo que Iracema, em arrepio,
sentiu banhar de sonho as suas ancas.
Que importa a lenda, ao longe, na história,
se elas cruzam, ligeiras, nesse instante,
o horizonte esticado da memória,
tornando o que se vê mito incessante?
As velas vão e voltam, incontidas,
sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro
repete antigos gestos de outras vidas
feitas de sal e sonho verdadeiro.
Qual Ulisses, buscando, repentino,
a sua ilha, o seu rosto e o seu destino.




ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE = 1888-1963


 Francisco, Meu Pai


Como que o vejo... o chapelão caído
Sobre a cabeça branca de algodão...
Buscando o campo, - o dia mal nascido,
Voltando à casa, o dia em escuridão.

Lavrador, fez da terra o ideal querido.
“Meu filho, a terra é que nos dá o pão”,
Dizia-me. E cavava comovido,
A várzea aberta para a plantação...

Mas um dia, eu, pequeno, vi, cavando,
Sete palmos de campo, soluçando,
Uns homens rudes ... Tempo que já vai!

“Francisco, adeus”! Diziam repetindo.
Meu pai desceu de branco... Ia dormindo
Fechou-se a terra... E não vi mais meu pai!






LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936

O Estranho Procedimento De Dona Dolores

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo — pai, mãe, filho e filha — e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.
— O que é isso, Dolores?
— Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.
— Acho que a mamãe pirou de vez.
— Brincadeira dela…
A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.
— Adivinhem o que tem de sobremesa?
Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.
— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. — Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:
— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
— Dolores…
Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
— Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.
— Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
— Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para uma platéia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.
— Ela está nervosa, é isso.
— Claro. É uma fase. Passa logo.
— É melhor nem chamar a atenção dela.
— Isso. É nervos.
Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:
— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.
Ou:
— Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.
— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?
— O quê?
— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.
— Dolores…
Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:
— Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!
Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
— Mãe, eu…
— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmara que só ela via, enquanto passava creme no rosto.
— Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.
Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.
— Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer…




MAURO MOTA
RECIFE-PE = 1911-1984

Assombrações Do Recife Velho


Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.

Fantasmas, rumores
na cama, estilhaços.

Apagam-se os lampiões
de bicos de gás
e as lamparinas
de azeite no quarto.

As rezas das tias,
velas no oratório.
A noite comprida
não acaba mais.

Cavalos, boleeiros,
de fraque e cartola
nas ruas vazias.

A moça encantada
no Encanta-Moça.

O Sobrado-Grande
com assombração.

A ronda do Diabo
na Cruz do Patrão
com fogo nos chifres,
correndo no istmo
de Olinda ao Recife.

Canoas sem remo
no Capibaribe.

Uivos dos cachorros
no fundo dos sítios
e dos lobizomens
pegando as mulheres
na Volta ao Mundo.






MARTINS FONTES
SANTOS-SP  =  1884-1937

Povo


O povo és tu, sou eu: nós somos povo.
E bendigamos a perfeita graça
De pertencer à multidão, à massa,
Diante da qual me inclino e me comovo.

Dela é que há de surgir o mundo novo.
E partícula dessa populaça,
Sinto que a prepotência me espedaça,
Mas do posto em que estou não me demovo.

Esqueço a Torre de Marfim da lenda.
E, a clarinar, me envolvo na contenda,
Ressangrando às pedradas e aos apodos.

Nada de caridade ou de piedade.
Mas de união ou solidariedade,
Sendo todos por um, sendo um por todos.






DOMINGOS PELLEGRINI
LONDRINA-PR  =  1949


Branca De Neve E Os Sete Anões


 Era uma vez uma linda moça que se perdeu numa floresta, num dia de neve e vento, mas pensou que estava salva quando viu fumaça no céu.
Era uma casa pegando fogo, os moradores deviam estar fora, então ela apagou o incêndio jogando neve. Depois entrou, apesar da casinha ser muito pequena, e, de tão cansada, dormiu numa caminha onde precisava deitar encolhida.
Acordou com sete anões em volta da cama, três de cada lado e o mais velho na cabeceira – e ele perguntou quem era ela, o que fazia na vida, o que queria ali. Ela suspirou:
- Não sei quem sou, mas me lembro que chamavam isso de amnésia. Não lembro o que fazia da vida mas, olhando minhas mãos, diria que não fazia nada. E o que quero aqui? Não sei!
- Pois bem – disse o velho anão – vamos te chamar de Branca de Neve. E agora você terá muito o que fazer, se quiser ter o que comer e onde dormir, e também para pagar os estragos que fez botando fogo e depois jogando neve em tudo.
Ela quis explicar mas já estava sendo soterrada de roupas por lavar.
Anos depois, Branca de Neve já estava envelhecida de tanto lavar e passar roupa, cozinhar, limpar caça e peixes, rachar lenha, fazer chá para sete a toda hora, costurar, inclusive botinas de couro curtido por ela mesma. E vivia dolorida porque, sempre encurvada, tinha de limpar e arrumar a casinha dos anões, onde continuava a dormir encolhida.
Os anões estavam gordos, pois deixavam para ela das plantações e colheita de frutas silvestres. E, uma vez por semana, um dormia com ela.
Passaram-se mais anos. Branca de Neve já não conseguia mais trabalhar tanto, cuidar dos catorze filhos e ainda da contabilidade dos anões, que tinham enriquecido usando o tempo livre para fazer negócios. Um dia, ela teve um chilique e desabafou chorando, gritou que não aguentava mais!
Mas o velho anão disse que podia ser pior:
- Nós podíamos ser homens normais, altos, usando roupas grandes para você lavar e comendo muito mais. Dê-se por feliz!
Naquele tempo, há apenas um século e tanto, mulher não tinha direito algum, feminismo seria considerado bruxaria e ela apenas falou tá bom, fazer o que. Foi chorar à beira do riacho, quando passou um homem bom, ouviu sua história e falou vem comigo.
- Mas como é teu nome?
- Coragem. Vem comigo. E o teu nome?
- Me chame de Mulher.
Montou na garupa do cavalo e nem olhou para trás. Remoçou com o novo companheiro, casaram, e todas as mulheres modernas nasceram do casamento de Mulher com Coragem.
__________
* Domingos Pellegrini é escritor, autor de contos, poesias, romances e romances juvenis. Ganhou o Prêmio Jabuti por suas obras “O Caso da Chácara Chão” e “O Homem Vermelho”, além de quatro outros Jabutis em segundo e terceiro lugares. Escreve crônicas para os jornais Gazeta do Povo, Folha de Londrina e Hoje em Dia. Na RUBEM, Pellegrini escreve às segundas-feiras.







J O R G E  D E  L I M A
UNIÃO DOS PALMARES-AL = 1895-1953

Dor Do Mundo


Apenas eu te aceito, não te quero
nem te amo, dor do mundo. Há honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobrançaria.

A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para não fugir.
Ó dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provação que me surgir.

Homero a tua história sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas só teus olhos nossos passos guiam,

e inda tens vozes para o mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitação dos olhos que não viam.






MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE  = 1886-1968


Improviso


Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar?

Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
- Brisa, viração
Da asa de uma abelha






RUBEM BRAGA
CACHOEIRO DO ITAPEMIRIM-ES = 1913-1990


Falamos sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado um ótimo, de carambola.
- Não sei que graça você acha em carambola.
Falamos sobre carambola, discutimos sobre carambola; passamos a romã e finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o jambo cor-de-rosa, este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as mangas, a manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma carlotinha.
Lembrei a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um dia telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer molho pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais:
- Vem… tem manga carlotinha…
– Manga carlotinha? Mentira!
E a moça foi. Refugaria talvez a promessa de casamento, se irritaria com um presente de jóia, mas como resistir a um homem que tem galinha ao molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite tão familiar? Ela não achou muita graça na história. Aliás não simpatizava com aquele amigo meu.
Ficamos um instante em silêncio. Comecei a mexer com o dedo o gelo dentro do copo. É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; para falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a pergunta, ergui os olhos e fiz:
- Mas afinal o que foi que o médico disse?
E ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras do médico, principalmente uma: Sindroma… teve uma dúvida:
- É síndroma ou sindroma?
Eu disse que francamente não sabia; apenas tinha a impressão de que a palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.
Em todo caso – juntei – não era bem uma doença; era um conjunto de sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para mostrar a incerteza, e ignorância da verdade verdadeira – ou até uma certa indiferença por essas coisas de palavras. Confessei-lhe que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não tivesse apenas duas letras e não fosse terra de Abrão ou cidade da Caldéia: UR. Se os charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria, a capital teria de ser UR. Eu falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse:
- Todo mundo, quando tem uma doença como esta minha, procura se enganar. Eu não.
Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.
- Não é pessimismo não. É…
Ela ia dizer o nome da doença, e tudo estaria perdido se ela pronunciasse aquele nome; seria intolerável.
- Você sabe muito bem o que é.
Chamei o garçom, pedi mais um uísque e mais um Alexander’s.
- Sabe quem eu vi hoje?
Era ela que mudava de conversa; senti um alívio. E falamos, e falamos… Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a testa, sua graça tocante. Era insuportável pensar que pudesse estar condenada. Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.
- Acho que o balé russo precisa se renovar…
Ela achava que não era justo falar em virtuosidade acrobática; o que havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a beleza do balé puro… E no meio da discussão me chamou de literato; mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivesse dito uma vez:
- Foi uma pena você não ter estudado balé.
Pensava no seu corpo de pernas longas na linha dura das ancas, nos seios pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou por beber tão depressa, e de repente:
- E esse seu bigode está horrível.
Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?
Ela riu uma risada tão alegre como antigamente.
Como as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre, tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.





DOMINGOS PELLEGRINI
LONDRINA-PR = 1949

Graças



Agradeço ao peixe por ter espinhas, ou eu não teria o prazer de tirar cada uma, aguçando o sabor com a paciência.
Agradeço ao pernilongo por zumbir: pior seria se não zumbisse, alertando para que eu lhe dê o velho tapa na orelha.
Agradeço à orelha por ter esse pavilhão todo encurvado, concha acústica que ainda se dá ao luxo de pendurar brincos.
Agradeço por não usar brincos, embora ache bonito em quem gosta; em mim seriam penduricalhos insuportáveis como os relógios que destrocei ou perdi, até me dar conta de que relógio e eu não fomos feitos um para o outro.
Agradeço ao sol, meu relógio sem ponteiros nem visor, que nos dias nublados me deixa sem tempo, o que também agradeço, cansado de correr atrás das horas.
Agradeço ao bocejo me avisando da hora de dormir, único amigo que me faz abrir a boca sem que diga besteiras.
Agradeço às besteiras que fiz e me ensinaram, como agradeço às besteiras que não fiz e, como não me arrependi, não era para fazer mesmo.
Agradeço aos arrependimentos que casaram com o aprendizado, para não virarem remorso ou rancor.
Agradeço às idéias que envelhecem, sinais de que estou me renovando.
Agradeço às novas idéias, sempre porém desconfiando: não é por lançarem novos chapéus que vou botar todos na cabeça.
Agradeço à mãe que me ensinou a agradecer, dizendo que na vida temos três palavras mágicas que abrem portas e caminhos: por favor, com licença, obrigado.
Agradeço ao pai que me mostrou o maior dos professores e o mais forte dos heróis – o exemplo.
Agradeço à doença que me faz valorizar a vida e a cuidar melhor do corpo.
Agradeço aos pés que levam o corpo a tantos lugares, e à cabeça que resolve onde devo colocar os pés.
Agradeço às mãos, esse time de dez dedos, sempre prontos a fazer tudo que só com as mãos podemos fazer.
Agradeço ao nariz, que cheira de longe, fareja de perto, empina de tonto e gosta de se meter onde não é chamado, por isso mesmo vive me ensinando a ser menos atirado.
Agradeço aos imprevistos e coincidências, essas brincadeiras de Deus a estimular minha criatividade: como reagir aos imprevistos, como aproveitar as coincidências?
Agradeço às catástrofes, a mostrar que o planeta está vivo, ou não teríamos nem ar, nem água, nem terra nem mar.
E agradeço ao tempo, que só sabe fazer uma coisa, que é passar, mas faz como ninguém, faz o tempo todo, faz sem parar, faz sem perdão nem apelação. Afinal, se fôssemos eternos, não estaríamos vivos!
E agradeço por passar tão bem meu tempo de vida que tenho coração e alma para agradecer.





ANTONIO GRAMSCI
ITÁLIA  =  1891-1937

Os Indiferentes


Odeio os indiferentes.
Acredito que viver
significa tomar partido.

Indiferença é apatia,
parasitismo, covardia.
Não é vida.

Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,
também, porque me provocam
tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes.

Vivo, sou militante.
Por isso, detesto
quem não toma partido.

Odeio os indiferentes.





WALCYR CARRASCO
BERNARDINO DE CAMPOS-SP  =  1951


Loucos Por Reuniões


Quero me encontrar com uma amiga. Impossível. Sua agenda anda apertadíssima. Proponho:
— Passo aí amanhã para tomar um cafezinho.
— Tenho uma reunião pela manhã e duas à tarde.
— Que tal um almoço?
— Adoraria. Mas já marquei com um cliente.
Suspiro. Insisto.
— Fim de semana, então. Você não me escapa!
— Vou para uma convenção.
— Ei, abre uma brecha! Estou com saudade de você.
Do outro lado da linha ecoa uma respiração profunda. Ela geme:
— Eu também. Estou com saudade de mim mesma.
É impressionante a paixão que a maioria das empresas e seus executivos demonstram por reuniões. Tenho o privilégio de trabalhar em casa. Mas ainda me lembro da época em que gastava grande parte de meu tempo em longas reuniões. Tomava litros de cafezinhos e fazia esforço para não bocejar enquanto os executivos falavam, falavam e falavam. Com frequência, foi perda de tempo e de paciência. A maioria se empenhava em concordar com o alto escalão sem dar na vista. Um amigo debatia longamente sua opinião, apresentava dados. Quando o chefe discordava, reagia com admiração, mesmo tendo ouvido alguma asneira. Humildemente, mudava de opinião. Certo dia, comentei:
— Não se envergonha de bajular tanto?
— Eu, hein? O homem é um poço de vaidade. Se discordar, vou para a lista negra.
Devia estar certo: hoje ocupa um cargo altíssimo na empresa. Os chefes que me perdoem, mas raramente algum suporta ser contrariado diante do próprio staff. Muitos adoram reuniões justamente para se pavonear, desfraldando opiniões sábias. Seu propósito é evidenciar quanto são aptos para continuar no timão. Soube de um que tem o hábito de estender as reuniões muito além do fim do expediente. Fala, conta piadas, discute projetos presentes e futuros enquanto seus executivos perdem jantares, cinemas e, com o tempo, a namorada.
Para mim, a hora do almoço é sagrada. Vivem me convidando para reuniões nesse horário, como se fosse vantagem! Como discutir um trabalho criativo enquanto meu interlocutor espeta pedaços de picanha com o garfo? Já conheci uma mulher que marcava dois e até três almoços de negócios no mesmo dia. No primeiro comia uma salada. Disparava para o outro encontro, em que mandava ver no prato principal. No terceiro, sobremesa e café.
— Assim, meu tempo rende mais — explicou-me.
Jamais me convencerá de que vale a pena. Comida e correria não combinam.
E a tecnologia torna tudo mais difícil. Ninguém mais pode fugir de reunião dizendo que a agenda está lotada. Inventaram a videoconferência. Ou seja, a reunião eletrônica, capaz de alcançar qualquer um a qualquer hora!
Não sou dono nem diretor de empresa para avaliar as vantagens de tantas reuniões, almoços de negócios, encontros de fim de semana. Os funcionários são contratados por seu talento, especialização, currículo. Mas quando realizam suas tarefas?
Fiz essa pergunta para minha amiga cuja saudade confessei. Sem sequer tentar defender o excesso de reuniões, ela rendeu-se:
— Acumulo muita coisa para o fim de semana.
— Ou seja, você vai para a empresa e não trabalha porque passa boa parte do tempo em reuniões. E aí executa em casa as tarefas profissionais. E sua vida pessoal, onde fica?
— Nem sei mais o que é vida pessoal!
Ela prometeu que nos veríamos na outra semana. Fingi acreditar. Serão necessárias tantas reuniões? Tenho muitas dúvidas. Mas fico pensando: quem entra nesse círculo vicioso não consegue mais trabalhar de verdade







ADALGISA NERY
RIO DE JANEIRO-RJ  =  1905-1980

Os Cegos

 
Não vemos o mostrador do Tempo
Assim como não vemos
Uma forma de vida fundir-se noutra.
Não vemos a vida caminhar sobre nossa origem
Construindo muralhas contra nós mesmos.
Não ouvimos o cântico de guerra
Festejando nossos fracassos
Registrados nas páginas do pensamento.
A cada hora vemos e sentimos menos
O mostrador do Tempo.
Somos mutações desordenadas
Multiplicando-se nos porões fétidos
De galeras negras, abandonadas.





ALUÍSIO AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1857 / 1913

Colaboração


Há uma cousa verdadeiramente horrorosa para todo o desgraçado em cujos dedos a triste sorte enfiou uma pena, ainda mesmo quando essa pena seja tão desatilada e tão romba como a minha - é a obrigação de concorrer com algum produto de sua lavra sempre que os amigos se lembram de realizar qualquer empresa ou empreender qualquer negócio.
Essa pequenina obrigação, que vista isoladamente não tem o mínimo valor, transforma-se todavia em um compromisso grave, em um martírio implacável, desde que ela representa a promessa de vinte, trinta, cem, mil artigos, destinados aos fins mais diversos e mais desencontrados.
E a graça é que não se pode a gente recusar a nenhum dos amigos, porque todos eles querem muito pouco: "Duas palavrinhas! Apenas duas palavrinhas, com o nosso nome por baixo!..." Ou então querem uma simples carta, uma simples notícia, um ligeiro pensamento, uma frase, um verso, uma palavra.
Este deseja que lhe escrevamos um anúncio de gosto, com que ele possa chamar a atenção do público sobre os seus queijos ou sobre os seus chapéus de pêlo: aquele quer apenas que lhe façamos uma boa resposta a uma certa carta que lhe enviou certa e determinada pessoa; estoutro não exige de nós senão uma página no seu álbum; aqueloutro contenta-se com um discurso que ele tem de pronunciar por ocasião do aniversário natalício de seu sócio; aqui é uma reclamaçãozinha pela imprensa a respeito dos escândalos que se dão em tal rua; ali uma introdução para o livro de um amigo e colega que vai estrear; mais adiante um artiguinho para encher o número do jornal, que nesse dia está fraco. Hoje - a poliantéia do senhor fulano; amanhã - o número especial da folha do Dr. Beltrano; depois - folhetim sobre os trabalhos de cicrano, rodapé pr'a cá, artigo de fundo p'ra lá, crônica para acolá.
Uf! É um nunca terminar de pequeninas maçadas que, reunidas são o bastante para nos amargurar a existência.
Chega-se a perder o gosto de sair de casa, de procurar os amigos de fazer a sua palestra; porque a cada passo surge-nos um dos tais credores de artiguinhos e pensamentos filosóficos.
"Então, fulano, aquilo!..."
"Aposto que ainda não fizeste o que te pedi!..."
"Trouxeste o artigo que prometeste?... "
"Quando estarás disposto a dar um passeio pelas nossas colunas?..."
"Queres ou não queres aprontar a correspondência?..."
E cada um, por que pede muito pouco, entende que não merecemos ser desculpados pela demora.
- Oh! Duas linhas! Duas linhas escrevem-se em três minutos!
- Mas filho! é que me falta a idéia! Estou seco, não sei o que te escreva!
- Qualquer cousa, homem!
- Enche aí duas tiras. Seja o que for.
- Seja o que for?... Pois bem, ora espera! Vais ver como te ensino!




RIO, 24 DE DEZEMBRO DE 1883





HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886 / 1934

A Mulher "Forte"


Quando o coronel Praxedes Gama teve notícia de que a filha havia abandonado o marido para ir viver com um capitalista, ficou furioso. Era o primeiro punhado de lama que tombava sobre a família.

— Vou ao Rio, e mato-a! — exclamava o honrado fazendeiro, a andar de um lado para outro do alpendre da fazenda, cofiando a barba venerável.

Coração de mãe, dona Miquelina tranqüilizava-o. Quem sabia se aquilo não seria a felicidade da menina? Tapassem, os dois, os ouvidos, e dessem tempo ao tempo. E o tempo foi, realmente, generoso, porque, ao visitar a filha, meses depois, e ao ser apresentado ao novo genro, o coronel ficou tão satisfeito com o luxo, a beleza, o bem-estar da sua Luizinha, que não lhe tocou, sequer, naquela mudança de estado.

Meses passados, voltou, e encontrou, já, outro genro.

— Meu marido, — apresentou a moça. E para o novo esposo, indicando o ancião:

— Meu pai.

Essa nova modificação na vida da filha feriu fundo o coração do velho, o qual, ao tê-la só, inquiriu, severo:

— Que é isso, então? Que vida é esta que levas? Tu não eras, acaso, uma mulher forte?

— Sou, papai; sou forte! — confirmou a moça.

E abraçando o velho, a garota:

— Papai já viu "forte" que não mude de guarnição?



AUGUSTO DOS ANJOS
CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB  =  1884 / 1914

O Condenado
           "Folga a Justiça e geme a natureza"
                                      Bocage



Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
- Ei-lo que passa - réprobo maldito.

Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.

E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.

O mundo é um sepulcro de tristeza.
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.





ASCENSO FERREIRA
PALMARES-PE  =  1895 / 1965

Maracatu


Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...

          — Luanda, Luanda, onde estou?
          Luanda, Luanda, onde estou?



ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  -  1855-1908

Chico

Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.
- Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.
- Estou às suas ordens.
- Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem é.
- Ele chama-se...?
- Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram - e é tudo quanto sei a seu respeito - que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.
O Chico dissimulou uma careta.
- Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?
- Certamente.
- Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.
O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.
- Está dito?
- Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.
No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.
- Um bêbado! - respondeu prontamente o outro.
- Bêbado?
- Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!
- Mas não se terá corrigido?
- Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. - Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.
- Casado?
- Casado, sim!
- Quem é esse Trancoso?
- Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.
- Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?
- Pois não!
No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.
Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.
Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"!
- Mas não é ele seu genro?
- Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!
- Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para...
- Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!...
Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.
Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.
Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.
- Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. - exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.
- A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!
- Boas ou más?
- Péssimas.
O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.
- Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem é o teu Pimentel.
- Pois diga! - resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.
Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:
- O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.
- Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.
O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.
Quando ele acabou o relatório:
- Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! - bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. - E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!
Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.
Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!
Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família - e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.
- Maricota apanhou a sorte grande! - diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.
Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.
O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:
- Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdôo-te, porque és um desgraçado!.
Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.






HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886 / 1934

A Violência


Testa franzida, fisionomia austera, palavras medidas, o delegado do Distrito inquiria, procurando a verdade, a vítima do delito. Roupa humilde, meias brancas de algodão, sapatos pretos e baratos, os olhos baixos, Maria Odete não fazia senão chorar. Para não demorar, porém, o inquérito, Dona Eufrásia, mãe da menina, ia prestando os esclarecimentos:
- Eu tenho uma pensão na Saúde, "seu" doutor. Dou comida e moradia a onze hóspedes, no meio dos quais aquele amaldiçoado. Quem me ajudava era, esta filha. Pois bem: uma noite, a menina estava deitada, dormindo, coitadinha! E o desgraçado, o João Isidoro, abusou dela!
- Foi exato, rapariga? - indagou a autoridade.
- Foi, sim... senhor! - soluçou a pequena, o lenço nos olhos.
- Você estava deitada?
- Sim, se... nhor!...
- Dormindo?
- Sim, se... nhor!... - gemeu a menina, afogada em soluços.
Letra larga, mergulhando a pena com estrondo no tinteiro, o escrivão tomava notas rápidas do depoimento. E foi quando o delegado, para que nada faltasse, inquiriu, ainda:
- E onde estava você dormindo?
- Eu?
- Sim.
E a rapariga, enxugando, com força, os olhos muito vermelhos:
- Na cama dele, sim, senhor!







ALBERTO DA CUNHA MELO
JABOATÃO DOS GUARARAPES-PE  =  1942-2007

Uma Teoria De Classe


Minha hipócrita

e piedosa classe média,

de carros, sorrisos

e diplomas emoldurados;

minha desapontada

legião de chefinhos

de ejaculação prematura,

sonhando com estrelas

menos tolerantes

que as aflitas amadas,

minha dialética

e esperdiçada classe morna,

quem sou eu,

minha classe perdida,

para condenar

tua salada verde,

tua falsa fome

de vida?





JOÃO UBALDO RIBEIRO
ILHA DE ITAPARICA-BA  =  1941-2014

O Verbo For

    Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
    O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
    Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
    — Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
    — "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
    Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
    — Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
    Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
    O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
    — Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
    — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
    — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
    — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
    — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
    Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
    — Esse "for" aí, que verbo é esse?
    Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
    — Verbo for.
    — Verbo o quê?
    — Verbo for.
    — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
    — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
    Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

Esta crônica foi publicada no jornal "O Globo" (e em outros jornais) na edição de domingo, 13 de setembro de 1998 e integra o livro "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20.





FLORBELA ESPANCA
PORTUGAL  = 1894 / 1930

À Guerra!



 Fala o canhão. Estala o riso da metralha
Os clarins muito ao longe tocam a reunir.
O Deus da guerra ri nos campos de batalha
E tu, ó Pátria, ergues-te a sorrir!


Vestes alva cota bordada e rosicleres
Desfraldas a bandeira rubra dos combates,
Levas no heróico seio a alma das mulheres
E ergue-se contigo a alma de teus vates!


Levanta-se do túmulo a voz dos teus heróis,
Cintila em tua fronte o brilho desses sóis,
Até o próprio mar t’incita a combater!


Nun’Alvares arranca a espada de glória
E diz-te em voz serena: «Em busca da vitória
Meu belo Portugal, combate até morrer!»



 AUGUSTO DOS ANJOS


CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB  =  1884-1914


Dolências


Oh! Lua morta de minha vida,
Os sonhos meus
Em vão te buscam, andas perdida
E eu ando em busca dos rastos teus...

Vago sem crenças, vagas sem norte,
Cheia de brumas e enegrecida,
Ah! Se morreste pra minha vida!
Vive, consolo de minha morte!

Baixa, portanto, coração ermo
De lua fria
À plaga triste, plaga sombria
Dessa dor lenta que não tem termo.

Tu que tombaste no caos extremo
Da Noite imensa do meu Passado,
Sabes da angústia do torturado...
Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!

Instilo mágoas saudoso, e enquanto
Planto saudades num campo morto,
Ninguém ao menos dá-me um conforto,
Um só ao menos! E no entretanto
Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar
Cedo na lida...
Oh! Lua fria vem me chorar
Oh! Lua morta da minha vida!






ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1855 / 1908

Desengano


 A pensionista pálida que gosta
(Fundada pretensão!) que a digam bela,
E do colégio, à tarde, na janela,
Para dar-me um sorriso se recosta;


Que me escreve nas férias, de Bemposta,
Aonde vai visitar a parentela,
Pedindo-me que não me esqueça dela
E dando-me uns beijinhos..., pela posta;


Essa ninfa gentil dos olhos pretos,
Essa beleza de anjo... oh, sorte vária;
Vergonha eterna para os meus bisnetos!


Com um pançudo burguês, uma alimária
Que não a sabe amar, nem faz sonetos,
Vai casar-se amanhã na Candelária.





PORTO ALEGRE-RS  =  1936

Chegou O Verão!




Verão também é sinônimo de pouca roupa e muito chifre, pouca cintura e muita gordura, pouco trabalho e muita micose.
Verão é picolé de Kisuco no palito reciclado, é milho cozido na água da torneira, é coco verde aberto pra comer a gosminha branca.
Verão é prisão de ventre de uma semana e pé inchado que não entra no tênis.
Mas o principal ponto do verão é.... A praia!
Ah, como é bela a praia.
Os cachorros fazem cocô e as crianças pegam pra fazer coleção.
Os casais jogam frescobol e acertam a bolinha na cabeça das véias.
Os jovens de jet ski atropelam os surfistas, que por sua vez, miram a prancha pra abrir a cabeça dos banhistas.
O melhor programa pra quem vai à praia é chegar bem cedo, antes do sorveteiro, quando o sol ainda está fraco e as famílias estão chegando.
Muito bonito ver aquelas pessoas carregando vinte cadeiras, três geladeiras de isopor, cinco guarda-sóis, raquete, frango, farofa, toalha, bola, balde, chapéu e prancha, acreditando que estão de férias.
Em menos de cinqüenta minutos, todos já estão instalados, besuntados e prontos pra enterrar a avó na areia.
E as crianças? Ah, que gracinhas! Os bebês chorando de desidratação, as crianças pequenas se socando por uma conchinha do mar, os adolescentes ouvindo walkman enquanto dormem.
As mulheres também têm muita diversão na praia, como buscar o filho afogado e caminhar vinte quilômetros pra encontrar o outro pé do chinelo.
Já os homens ficam com as tarefas mais chatas, como furar a areia pra fincar o cabo do guarda-sol. 
É mais fácil achar petróleo do que conseguir fazer o guarda-sol ficar em pé.
Mas tudo isso não conta, diante da alegria, da felicidade, da maravilha que é entrar no mar!
Aquela água tão cristalina, que dá pra ver os cardumes de latinha de cerveja no fundo.
Aquela sensação de boiar na salmoura como um pepino em conserva.
Depois de um belo banho de mar, com o rego cheio de sal e a periquita cheia de areia, vem àquela vontade de fritar na chapa.
A gente abre a esteira velha, com o cheiro de velório de bode, bota o chapéu, os óculos escuros e puxa um ronco bacaninha.
Isso é paz, isso é amor, isso é o absurdo do calor!!!!!
Mas, claro, tudo tem seu lado bom.
E à noite o sol vai embora.
Todo mundo volta pra casa tostado e vermelho como mortadela, toma banho e deixa o sabonete cheio de areia pro próximo.
O shampoo acaba e a gente acaba lavando a cabeça com qualquer coisa, desde creme de barbear até desinfetante de privada.
As toalhas, com aquele cheirinho de mofo que só a casa da praia oferece.
Aí, uma bela macarronada pra entupir o bucho e uma dormidinha na rede pra adquirir um bom torcicolo e ralar as costas queimadas.
O dia termina com uma boa rodada de tranca e uma briga em família.
Todo mundo vai dormir bêbado e emburrado, babando na fronha e torcendo, pra que na manhã seguinte, faça aquele sol e todo mundo possa se encontrar no mesmo inferno tropical...


ITABUNA-BA = 1912-2001

Roça De Cacaus

 
A sombra das roças é macia e doce, é como uma carícia. Os cacaueiros se fecham em folhas grandes que o sol amarelece. Os galhos se procuram e se abraçam no ar, parecem uma árvore subindo e descendo o morro, a sombra de topázio se sucedendo por centenas e centenas de metros. Tudo nas roças de cacau é em tonalidades amarelas, onde, por vezes, o verde rebenta violento. De um amarelo aloirado são as minúsculas formigas pixixicas que cobrem as folhas dos cacaueiros e destroem a praga que ameaça o fruto. De um amarelo desmaiado se vestem as flores e as folhas novas que o sol pontilha de amarelo queimado. Amarelos são os frutos precoces que pecaram ao calor demasiado. Os frutos maduros lembram lâmpadas de oiro das catedrais antigas, fulgem com um brilho resplandecente aos raios do sol, que penetram a sombra das roças. Uma cobra amarela – uma papa-pinto – acalenta o sol na picada aberta pelos pés dos lavradores. E até a terra, barro que o verão transformou em poeira, tem um vago tom amarelo, que se prende e colore as pernas nuas dos negros e dos mulatos que trabalham na poda dos cacaueiros.
Dos cocos maduros se derrama uma luz doirada e incerta que ilumina suavemente pequenos ângulos das roças. O sol que se filtra através das folhas desenha no ar colunas amarelas de poeira, que sobem para os galhos e se perdem além, por cima das folhas mais altas. Os juparás, macacos plantadores de cacau, pulam de galho em galho, numa algazarra, sujando o oiro dos cacaueiros com o seu amarelo fosco e sujo. A papa-pinto desperta, estira seu dorso cor de gema de ovo, parece uma vara de metal que fosse flexível. Seus olhos amarelos de cobiça fitam os macacos que passam, bando buliçoso e alegre. Caem gotas de sol através dos cacaueiros. Vão rebentar em raios no chão, quando batem nas roças de água lhe dão um colorido de rosa-chá. Como se houvesse uma chuva de topázio caindo do céu, virando pétalas de rosa-chá no chão de poeira ardente. Há todos os tons de amarelos na tranqüilidade da manhã nas roças de cacau.
E, quando corre uma leve brisa, todo aquele mar de amarelo se balança, as tonalidades se confundem, criam um amarelo novo, o amarelo das roças de cacau, ah! O mais belo do mundo! Um amarelo como só os grapiúnas vêem nos dias de verão do paradeiro. Não há palavras para descrevê-lo, não há imagem para compará-lo, um amarelo sem comparação, o amarelo das roças de cacau!
 
Fontes: - AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. SP: Livraria Martins, 1968.






MACHADO DE ASSIS
RIO DE JANEIRO-RJ  =  1839-1908




Já em 1884, no tempo do Império, quando o voto para a Assembléia Geral era censitário (só votavam pessoas acima de certa renda) e as mulheres sequer tinham esse direito, Machado de Assis escreveu uma crônica - bem atual - satirizando os políticos pedindo votos. Vamos a ela:
Venho pedir-lhe o seu voto na próxima eleição para deputado.
— Mas, com o senhor, fazem setenta e nove candidatos que...
— Perdão: oitenta. Que tem isto? A reforma eleitoral deu a cada eleitor toda a independência, e até fez com que adiantássemos um passo. [...]
— Bem; pede-me o voto.
— Sim, senhor.
— Responda-me primeiro. Que é que fazia até agora?
— Eu...?
— Sim, trabalhou com a palavra ou com a pena, esclareceu os seus concidadãos sobre as questões que lhe interessam, opôs-se aos desmandos, louvou os acertos...
— Perdão, eu...
— Diga.
— Eu não fiz nada disso. Não tenho que louvar nada, não sou louva-deus.
Opor-me! É boa! Opor-me a quê? Nunca fiz oposição.
— Mas esclareceu...
— Nunca, senhor! Os lacaios é que esclarecem os patrões ou as visitas: não sou lacaio. Esclarecer! Olhe bem para mim.
— Mas, então, o que é que o senhor quer?
— Quero ser deputado.
— Para quê?
— Para ir à câmara falar contra o ministério.
— Ah! é contra o Dantas?
— Nem contra nem pró. Quem é o Dantas? Eu sou contra o ministério... Digo-lhe mesmo que a minha idéia é ser ministro. Não imagina as cócegas com que fico em vendo um dos outros de ordenanças atrás... Só Deus sabe como fico!
— Mas já calculou, já pesou bem as dificuldades a que...
— O meu compadre Z... diz que não gasta muito.
— Não me refiro a isso; falo do diploma, o uso do diploma. Já pesou...
— Se já pesei? Eu não sou balança.
— Bem, já calculou...
— Calculista? Veja lá como fala. Não sou calculista, não quero tirar vantagens disto; graças a Deus para ir matando a fome ainda tenho, e possuo braços. Calculista!
— Homem, custa-me dizer o que quero. O que eu lhe pergunto é se, ao apresentar-se candidato, refletiu no que o diploma obriga ao eleito.
— Obriga a falar.
— Só falar?
— Falar e votar.
— Nada mais?
— Obriga também a passear, e depois torna-se a falar e votar. Para isto é que eu vinha pedir-lhe o voto, e espero não me falte.
— Estou pronto, se o senhor me tirar de uma dificuldade.
— Diga, diga.
— O X. pediu-me ontem a mesma coisa, e depois de ouvir as mesmas perguntas que lhe fiz, às quais respondeu do mesmo modo. São do mesmo partido, suponho!
— Nunca: o X. é um peralta.
— Diabo! Ele diz a mesma coisa do senhor.

 
Crônica de Machado de Assis de 10 de novembro de 1884, publicada na seção "Balas de Estalo" da Gazeta de Notícias, extraída do livro Crônicas de Lélio(Ediouro). Foto de Machado de Assis por Marc Ferrez.





ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1855 / 1908

Desengano


A pensionista pálida que gosta
(Fundada pretensão!) que a digam bela,
E do colégio, à tarde, na janela,
Para dar-me um sorriso se recosta;

Que me escreve nas férias, de Bemposta,
Aonde vai visitar a parentela,
Pedindo-me que não me esqueça dela
E dando-me uns beijinhos..., pela posta;

Essa ninfa gentil dos olhos pretos,
Essa beleza de anjo... oh, sorte vária;
Vergonha eterna para os meus bisnetos!

Com um pançudo burguês, uma alimária
Que não a sabe amar, nem faz sonetos,
Vai casar-se amanhã na Candelária.





ANTÓNIO GEDEÃO
PORTUGAL  =  1906 - 1997

Minha Aldeia


Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valências de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que emergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.





ALUÍSIO AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1857 / 1913

Colaboração


 Há uma cousa verdadeiramente horrorosa para todo o desgraçado em cujos dedos a triste sorte enfiou uma pena, ainda mesmo quando essa pena seja tão desatilada e tão romba como a minha - é a obrigação de concorrer com algum produto de sua lavra sempre que os amigos se lembram de realizar qualquer empresa ou empreender qualquer negócio.
Essa pequenina obrigação, que vista isoladamente não tem o mínimo valor, transforma-se todavia em um compromisso grave, em um martírio implacável, desde que ela representa a promessa de vinte, trinta, cem, mil artigos, destinados aos fins mais diversos e mais desencontrados.
E a graça é que não se pode a gente recusar a nenhum dos amigos, porque todos eles querem muito pouco: "Duas palavrinhas! Apenas duas palavrinhas, com o nosso nome por baixo!..." Ou então querem uma simples carta, uma simples notícia, um ligeiro pensamento, uma frase, um verso, uma palavra.
Este deseja que lhe escrevamos um anúncio de gosto, com que ele possa chamar a atenção do público sobre os seus queijos ou sobre os seus chapéus de pêlo: aquele quer apenas que lhe façamos uma boa resposta a uma certa carta que lhe enviou certa e determinada pessoa; estoutro não exige de nós senão uma página no seu álbum; aqueloutro contenta-se com um discurso que ele tem de pronunciar por ocasião do aniversário natalício de seu sócio; aqui é uma reclamaçãozinha pela imprensa a respeito dos escândalos que se dão em tal rua; ali uma introdução para o livro de um amigo e colega que vai estrear; mais adiante um artiguinho para encher o número do jornal, que nesse dia está fraco. Hoje - a poliantéia do senhor fulano; amanhã - o número especial da folha do Dr. Beltrano; depois - folhetim sobre os trabalhos de cicrano, rodapé pr'a cá, artigo de fundo p'ra lá, crônica para acolá.
Uf! É um nunca terminar de pequeninas maçadas que, reunidas são o bastante para nos amargurar a existência.
Chega-se a perder o gosto de sair de casa, de procurar os amigos de fazer a sua palestra; porque a cada passo surge-nos um dos tais credores de artiguinhos e pensamentos filosóficos.
"Então, fulano, aquilo!..."
"Aposto que ainda não fizeste o que te pedi!..."
"Trouxeste o artigo que prometeste?... "
"Quando estarás disposto a dar um passeio pelas nossas colunas?..."
"Queres ou não queres aprontar a correspondência?..."
E cada um, por que pede muito pouco, entende que não merecemos ser desculpados pela demora.
- Oh! Duas linhas! Duas linhas escrevem-se em três minutos!
- Mas filho! é que me falta a idéia! Estou seco, não sei o que te escreva!
- Qualquer cousa, homem!
- Enche aí duas tiras. Seja o que for.
- Seja o que for?... Pois bem, ora espera! Vais ver como te ensino!




RIO, 24 DE DEZEMBRO DE 1883

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