segunda-feira, 13 de agosto de 2018


CONTO = Lima Barreto


Um Especialista

O comendador Mota era um português de meia-idade, rico proprietário de uma fábrica de fósforos. Viúvo e sem filhos, o gordo Mota levava uma vida de solteiro. Gostava de bares, festas e prostíbulos, sempre arranjando novos namoricos. Ele vivia no Rio de Janeiro desde os 24 anos, tendo estado antes seis no Recife.
O melhor amigo de Mota, coronel Carvalho, também era português. Embora fosse casado, sempre abandonava a mulher sozinha num casarão do Engenho Velho, cuidando das filhas, e tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.
O coronel Carvalho adorava as prostitutas estrangeiras, francesas e italianas. Também gostava de bailarinas, cantoras ou simplesmente meretrizes. Já o comendador Mota, era vidrado numa mulata. Considerava-se “um especialista” e procurava-as com o afinco e o ardor de um colecionador de raridades. Dizia que a mulata “é a canela, o cravo, a pimenta; é, enfim, a especiaria que os portugueses, desde Vasco da Gama, não param de procurar.”
Certa vez, Mota sumiu de circulação. Já havia quinze dias que Carvalho não o encontrava em lugar algum. Curioso para saber notícias do amigo, Carvalho foi visitá-lo em casa. Mota explicou que andava ausente por causa de um “achado”, uma “mulata deliciosa” que conhecera. Contou, então, como a tinha encontrado. Tinha tomado um barco onde marcara um encontro de negócios com um comerciante nordestino. No barco, viu uma linda mulata passando. De indagação em indagação, soube ela se chamava Alice e que viajava com um alferes do Exército. Também soube que o alferes era apenas um “amigo” e que ela estava indo para o Rio de Janeiro “fazer a vida”. Mota desceu do barco com a moça, levou-a para uma pensão e começaram a namorar. Orgulhoso de sua conquista, o comendador estava decidido a montar um apartamento para Alice, cobri-la de jóias e presentes, fazer dela sua amante permanente.
Querendo que Carvalho visse sua nova “aquisição”, Mota combinou que o amigo fosse à ópera na noite seguinte. Ele iria com Alice e ficaria nos camarotes. Carvalho concordou e, durante a apresentação, pôde apreciar Alice. De fato, ela era um “estouro”. Durante o intervalo, Carvalho ouviu um rapazola dizendo: “Que mulatão!”. Outro refletiu: “Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro.” O primeiro concluiu maliciosamente: “Parecem pai e filha.” Essa frase calou fundo no ânimo do coronel. De fato, a menina tinha o mesmo queixo de Mota, as mesmas sobrancelhas arqueadas, vagas semelhanças.
Após a ópera, Mota convidou Carvalho para ir com ele e Alice até um restaurante. Foram e, enquanto bebiam, contavam de suas vidas. Alice dizia que Recife era mais bonito do que a Corte. O comendador concordou e contou à amante que vivera seis anos naquela cidade. Perguntou onde ela morava e soube que tinham sido quase vizinhos. O comendador Mota começou a ficar cada vez mais curioso. Soube que a mãe de Alice tinha morrido há oito anos e que ela, agora, tinha vinte e seis.
Animada pelo vinho, Alice contou que, desde que ficara órfã, sua vida fora um tormento. Tivera vários homens, mas muitos a espancavam e maltratavam. Confessou que tinha medo de que fizessem com ela o mesmo que fizeram com sua mãe: que a roubassem e a abandonassem grávida. Segundo Alice, sua mãe tinha sido honesta. Quando moça, vivia na cidade do Cabo com os pais. Lá, foi seduzida por um caixeiro português que a levou para o Recife. Dois meses depois do nascimento de Alice, seu pai voltou ao Cabo para liquidar a herança que cabia à sua mãe pela morte de seus pais. De volta ao Brasil, o caixeiro partiu para o Rio de Janeiro e nunca mais tiveram notícias dele ou do dinheiro.
Abalado, o comendador perguntou como se chamava o pai de Alice. Ela disse que não sabia. Sua mãe negava-se a falar sobre ele. Então, ele a pressionou para dizer se lembrava de mais alguma coisa. Alice contou que, certa vez, sua mãe ficara sabendo que, no Brasil, seu pai envolvera-se num caso de moedas falsas. O comendador começou a passar mal. O coronel Carvalho e Alice não compreendiam. Então, num supremo esforço, o comendador Mota disse com voz sumida: “Meu Deus! É minha filha!”

LIMA BARRETO
RIO DE JANEIRO-RJ = 1881-1922









POESIA = Thiago de Mello



A Mão Que Eu Cato O Lixo

Não e a mão com que eu devia ter.
Não tenho para ganhar
Na mesa da minha casa
O pão bom de cada dia.
Como não tenho, aqui estou.
Catando lixo dos outros,
O resto que vira lixo.
Não faz mal se ficou sujo,
Se os urubus beliscaram,
Se ratos roeram pedaços,
Mesmo estragado me serve,
Porque fome não tem luxo.
A mão com que cato o lixo
Não e a que eu devia ter.
Mas a mão que a gente tem
E feita pela nação.
Quando como coisa podre
Depois me torço de dor
Fico pensando: tomara
Que esta dor um dia doa
Nos que tem tanto, mas tanto,
Que transformam pão em lixo
Com meus dedos no monturo
Sinto-me lixo também.
Não pareço, mas sou criança.
Por isso enquanto procuro
Restos de vida no chão,
Uma fome diferente,
Quem sabe é o pão da esperança
Esquenta meu coração:
Que um dia criança nenhuma
Seja mão serva do lixo.

THIAGO DE MELLO
BARREIRINHA-AM, 1926


HUMOR










CRÔNICA = Luís Fernando Veríssimo



A FOFOQUEIRA
(Crônica de Humor)


Durante três dias, Raquel, a fofoqueira do bairro, observou a vizinha Valéria que morava na casa antiga, na frente da sua. Rua sem saída. Os vizinhos comentavam que Valéria havia enlouquecido.
Fazia três anos que perdera o marido e um ano da morte da mãe. Valéria passou muito tempo de luto e tristeza. Dois meses atrás, havia se aventurado numa viagem turística ao Nordeste, junto com uma prima. Voltou de bom humor, mas nos últimos dias falava sozinha, gesticulava, ria... Teria alguma visita? 
Nesta tarde de sábado, Valéria ria muito.
- Ela enlouqueceu!.. - gritou Raquel. - Venha, querido, venha e olhe... O marido relutou um pouco, mas como a esposa continuava: Venha... venha... ele deixou o jornal e levantou-se, com dificuldade, da poltrona onde estava esparramado. Aproximou-se da janela. Olhe lá, olhe, João, parece que está falando com alguém.. mas Valéria está sozinha desde que a mãe morreu. Falarei com ela. Talvez precise de um médico... de um psiquiatra... de terapia...
Raquel pegou o telefone: - Olá,Valéria? Você está bem?
- Feliz com meu noivo nordestino – respondeu rindo Valéria.
Raquel, curiosa, continuou a espiar pela janela. Querido, venha, venha ver... venha, por favor... O marido
ovamente deixa o jornal de lado e se aproxima a passos vagarosos até a janela.
- Olhe, disse a mulher... Valéria fala e ri... sozinha.... 
- Sozinha, não! Com seu noivo imaginário, ironiza o marido. Volta a sentar-se na poltrona e pega o jornal.
- Eu vou falar com ela – enfatiza Raquel.
Minutos depois, Raquel aperta com força a campainha. A porta se abre. 
– Este é Armando, meu noivo... - grita Valéria da cozinha. Só nesse momento Raquel repara no anão de pijama azul, na ponta dos pés, segurando-se na maçaneta da porta. Sorridente, o anão a convida a entrar. Raquel fica paralisada ao lado da porta.
Armando insiste. - Sente-se, vizinha, pode pegar um pedaço de bolo. Eu mesmo fiz...
- Aqui está o chá mate!... – disse contente Valéria. 
Coloca a chaleira na mesa, agacha-se e abraça o anão. Ele, sempre sorridente, dá um beijão na boca da namorada. Depois sobe na escadinha que está ao lado da mesa e serve um pedaço de bolo para dona Raquel.
Raquel, sem palavras, senta-se na cadeira e pega o pratinho com o bolo, acanhada, não sabe o que dizer. Os três ficam em silêncio. 
Raquel, tentando ser agradável pergunta: - É bolo de laranja?
No dia seguinte, Raquel falava com Adelaide, a velhinha do sobradinho amarelo, quando vê passar, Valéria, de mãos dadas com Armando. Os dois, sorridentes, cumprimentam e continuam seu passeio.
Sem poder conter-se, Raquel murmura para Adelaide: Como ela pode sair com um homem tão pequeno?
A velhinha, muito jocosa, emenda: Segundo ouvi dizer, Armando é pequeno só de estatura, dona Raquel, só de estatura...


LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS, 1936

POESIA = Clóvis Campelo


A Barbárie


Quando fugiu a barbárie
das ruas estreitas do gueto,
expondo da vida a cárie,
cantando a morte em dueto,

com a fúria de cão sem dono
quando descobre o abandono,

qual sinistra procissão
sem benção ou extrema-unção,
sem chance de algum perdão,

devolveu ao mundo fausto
as dores do holocausto!


CLÓVIS CAMPELO
RECIFE-PE  =  1951


POESIA = Carlos Pena Filho




Soneto Principalmente Do Carnaval
(Do livro "Os Melhores Poemas –
Carlos Pena Filho - Global Editora, 1983)



Do fogo à cinza fui por três escadas
e chegando aos limites dos desertos,
entre furnas e leões marquei incertos
encontros com mulheres mascaradas

De pirata da Espanha disfarçado
adormeci panteras e medusas.
Mas, quando me lembrei das andaluzas,
pulei do azul, sentei-me no encarnado.

Respirei as ciganas inconstantes
e as profundas ausências do passado,
porém, retido fui pelos infantes

que me trouxeram vidros do estrangeiro
e me deixaram só, dependurado
nos cabelos azuis de fevereiro.


CARLOS PENA FILHO
RECIFE-PE  =  1929-1960