Um Especialista
O comendador Mota era um português de meia-idade, rico
proprietário de uma fábrica de fósforos. Viúvo e sem filhos, o gordo Mota
levava uma vida de solteiro. Gostava de bares, festas e prostíbulos, sempre
arranjando novos namoricos. Ele vivia no Rio de Janeiro desde os 24 anos, tendo
estado antes seis no Recife.
O melhor amigo de Mota, coronel Carvalho, também era português. Embora fosse casado, sempre abandonava a mulher sozinha num casarão do Engenho Velho, cuidando das filhas, e tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.
O melhor amigo de Mota, coronel Carvalho, também era português. Embora fosse casado, sempre abandonava a mulher sozinha num casarão do Engenho Velho, cuidando das filhas, e tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.
O coronel Carvalho adorava as prostitutas estrangeiras,
francesas e italianas. Também gostava de bailarinas, cantoras ou simplesmente
meretrizes. Já o comendador Mota, era vidrado numa mulata. Considerava-se
“um especialista” e
procurava-as com o afinco e o ardor de um colecionador de raridades. Dizia que
a mulata “é a canela, o cravo, a pimenta; é, enfim, a especiaria que os
portugueses, desde Vasco da Gama, não param de procurar.”
Certa vez, Mota sumiu de circulação. Já havia quinze dias
que Carvalho não o encontrava em lugar algum. Curioso para saber notícias do
amigo, Carvalho foi visitá-lo em casa. Mota explicou que andava ausente por
causa de um “achado”, uma “mulata deliciosa” que conhecera. Contou, então, como
a tinha encontrado. Tinha tomado um barco onde marcara um encontro de negócios
com um comerciante nordestino. No barco, viu uma linda mulata passando. De
indagação em indagação, soube ela se chamava Alice e que viajava com um alferes
do Exército. Também soube que o alferes era apenas um “amigo” e que ela estava
indo para o Rio de Janeiro “fazer a vida”. Mota desceu do barco com a moça,
levou-a para uma pensão e começaram a namorar. Orgulhoso de sua conquista, o
comendador estava decidido a montar um apartamento para Alice, cobri-la de
jóias e presentes, fazer dela sua amante permanente.
Querendo que Carvalho visse sua nova “aquisição”, Mota
combinou que o amigo fosse à ópera na noite seguinte. Ele iria com Alice e
ficaria nos camarotes. Carvalho concordou e, durante a apresentação, pôde
apreciar Alice. De fato, ela era um “estouro”. Durante o intervalo, Carvalho
ouviu um rapazola dizendo: “Que mulatão!”. Outro refletiu: “Esses portugueses
são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro.” O primeiro concluiu
maliciosamente: “Parecem pai e filha.” Essa frase calou fundo no ânimo do
coronel. De fato, a menina tinha o mesmo queixo de Mota, as mesmas sobrancelhas
arqueadas, vagas semelhanças.
Após a ópera, Mota convidou Carvalho para ir com ele e
Alice até um restaurante. Foram e, enquanto bebiam, contavam de suas vidas.
Alice dizia que Recife era mais bonito do que a Corte. O comendador concordou e
contou à amante que vivera seis anos naquela cidade. Perguntou onde ela morava
e soube que tinham sido quase vizinhos. O comendador Mota começou a ficar cada
vez mais curioso. Soube que a mãe de Alice tinha morrido há oito anos e que ela,
agora, tinha vinte e seis.
Animada pelo vinho, Alice contou que, desde que ficara
órfã, sua vida fora um tormento. Tivera vários homens, mas muitos a espancavam
e maltratavam. Confessou que tinha medo de que fizessem com ela o mesmo que
fizeram com sua mãe: que a roubassem e a abandonassem grávida. Segundo Alice,
sua mãe tinha sido honesta. Quando moça, vivia na cidade do Cabo com os pais.
Lá, foi seduzida por um caixeiro português que a levou para o Recife. Dois
meses depois do nascimento de Alice, seu pai voltou ao Cabo para liquidar a
herança que cabia à sua mãe pela morte de seus pais. De volta ao Brasil, o
caixeiro partiu para o Rio de Janeiro e nunca mais tiveram notícias dele ou do
dinheiro.
Abalado, o comendador perguntou como se chamava o pai de Alice.
Ela disse que não sabia. Sua mãe negava-se a falar sobre ele. Então, ele a
pressionou para dizer se lembrava de mais alguma coisa. Alice contou que, certa
vez, sua mãe ficara sabendo que, no Brasil, seu pai envolvera-se num caso de
moedas falsas. O comendador começou a passar mal. O coronel Carvalho e Alice
não compreendiam. Então, num supremo esforço, o comendador Mota disse com voz
sumida: “Meu Deus! É minha filha!”
LIMA BARRETO
RIO DE JANEIRO-RJ = 1881-1922
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