Hoje De Madrugada
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando
percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi
sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma
caligrafia rápida e nervosa; foi uma frase curta que ela escreveu, me
empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos:
"vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de
ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com
os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e
quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha
escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem
me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava
afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada;
provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia.
E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava.
Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para
dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi
preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que
eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos,
enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim
talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a
volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso
do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus
dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o
braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um
objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci
lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa
altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim
se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a
janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas
estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a
madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava
de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando
de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço
desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o
traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela
espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés
descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé,
tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele
no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do
meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me
lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início
se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me
desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei
a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça
jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os
olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das
pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não
eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se
deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou.
Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada
qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode
ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida
quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva
escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse
por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão
minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
RADUAN NASSAR
PINDORAMA-SP, 1935
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