domingo, 31 de janeiro de 2016
POESIA = LEDO iVO
O Ladrão
Quando deixei Maceió, fechei a porta
do mar
E enxotei os navios que insistiam em
seguir-me.
Tive de aninhar o vento nos
corredores
Das casas brancas que guardam
lacraias.
Mas o mar me acompanhou até nos
sonhos,
Igual ao sol azul que sustenta o
mormaço.
O vento veio voando e era um bando
de pássaros.
A chuva da minha infância continua
caindo
Com o seu séquito de tanajuras e
caranguejos.
Até as dunas caminham ao meu
encontro
E me rodeiam, exigindo que eu
devolva
A chave de areia e o oceano roubado.
LEDO IVO
MACEIÓ-AL = 1924-2013
CRÔNICA = HUMBERTO DE CAMPOS
A Mulata
26 de janeiro
Aumentados com
a descoberta do Brasil os limites civilizáveis do mundo, compreendeu Jeová, do
seu trono de nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em nome
da sua gloria, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele encher,
porém, a terra maravilhosa, que se mostrava tão promissora? A raça branca, que
ele tanto amava e protegia, dominava, já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço
da humanidade e dos grandes mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que
a enchiam toda, e que se haviam derramado, aventureiros, pelas ilhas
circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se lamentava da sua condição e
do seu destino, coubera a África inteira, de que se tornara senhora. Fazia-se
mister, pois, criar um tipo novo, uma raça nova e bendita, que se apropriasse
com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das ondas.
Resolvido isso,
tomou o Senhor do seu camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material, em
suma, com que trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e,
misturando um pouco da pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente
igual na dosagem, de que fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta
morena e macia, em que se pôs a modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
Concluída a
obra, o estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que pusera
toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova Afrodita resumia, com os
seus olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas linhas voluptuosas e a sua
pele acentuadamente castanha, todos os encantos e todas as graças da criação.
Deslumbrado, encantado, embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a,
banhou-a com a luz dos seus olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma
idéia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um dente de
alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua, friccionou-lhe
pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços. Em
seguida, ordenou-lhe, recuando: - "Surge et ambula!"
A estatua
moveu-se, preguiçosa, e com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo
em que fora polida.
Jeová sorriu,
de novo, e, com orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço,
dizendo-lhe, como dissera a Constantino, na legenda sagrada: - "In hoc signo
vinces!"
A mulata abriu
os lábios num sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um gesto, o
caminho da terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em
direção ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém, batia, de novo, à porta
da oficina celeste.
- Você por
aqui, ainda? - estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou
os olhos, procurando justificar-se:
- Foi
impossível chegar ao meu destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das
nuvens.
- Por que? -
trovejou o Criador, indignado.
E ela, corando,
envergonhada: - As almas dos portugueses não me deixaram passar...
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886 / 1934
POESIA = Altair Leal
Rua Que Impera A Dor
Passeando
no centro do Recife, turismo? passagem?
Paisagem da Rua do Imperador,
Deparo com crianças pobres; magras não. Ossulentas.
Dormindo e sonhando em chão cuspido.
O que será, santos? miragem?
Paisagem da Rua do Imperador,
Deparo com crianças pobres; magras não. Ossulentas.
Dormindo e sonhando em chão cuspido.
O que será, santos? miragem?
O
homem, o transeunte ausente,
Pedestre em pensamentos do trabalho,
Caminha sem culpas, pisando em sonhos,
Calçadas, restos de vida (carente).
Pedestre em pensamentos do trabalho,
Caminha sem culpas, pisando em sonhos,
Calçadas, restos de vida (carente).
Amanhã
será outro dia. Será?
Não, é o mesmo dia!
Só muda o tempo, as chances de sonhar.
Não, é o mesmo dia!
Só muda o tempo, as chances de sonhar.
Não
há chances, não há sonhos (bobagem)
Suponho. A realidade é outra história.
Pego um ônibus de cabeças cheias,
E fecho o ciclo da viagem.
Suponho. A realidade é outra história.
Pego um ônibus de cabeças cheias,
E fecho o ciclo da viagem.
ALTAIR LEAL
LIMOEIRO-PE = 1960
CRÔNICA = Antônio Maria
A Mesa Do Café
(Antônio Maria, in “Crônicas”,
26/09/1961)
Menino só sabe que é feio, no colégio, quando o padre
escolhe os que vão ajudar à missa, os que vão sair de anjo, na procissão, e os
que vão constituir a diretoria do Grêmio Mariano.
Eu soube que não era bonito em 1928, no Colégio Marista de
Recife. Nunca fui escolhido. Mas sem a menor tristeza, sem concordar até.
Aquele julgamento era precipitado, pois (estava convencido) ainda não havia
nada de definitivo sobre o bonito e o feio, a beleza e a fealdade. Quais seriam
as demarcações? A exata limítrofe, quem seria capaz de determinar? Se não
existia a explicação lógica do feio e do bonito, a notícia da minha feiura não
me causava mal nenhum. Ao contrário, livrava-me dos tributos que teria que
pagar se fosse bonito, ajudando missa e saindo de anjo, à frente das
procissões.
Na mesa do café, eramos cinco irmãos. Havia bolo de
mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d’água. Eramos cinco
irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era o feio. Então, por que
minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia
pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena não era,
porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente,
por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser
bruto, de tão livre, alegre e descuidado.
Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia, e ela sabia que eu
sabia. Em tudo a nossa cumplicidade. Na fatia do bolo, na talhada de requeijão
e no sobejo do seu copo d’água. Nossa cumplicidade até hoje existe, quando de
raro em raro nos encontramos.
Da mesa do café víamos pela vidraça os canteiros de terra
negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das
pálidas rosas da minha infância.
Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.
Minha mãe só tem um defeito. Não ser minha filha. Sempre
foi metida a saber mais que eu.
Só soube que era feio quando amei pela primeira vez. Vi-me,
então, corajosamente… e não era como gostaria de ser. No coração, um amor tão
bonito. Ninguém iria acreditar, mesmo dizendo, mesmo eu explicando, mesmo eu
jurando.
Apaguei a luz, tocava o concerto nro. 3 de Beethoven e, no
fnal, apesar do tom ser menor, o lirismo era tão ardente que tudo ficou
entendido, entre mim e a minha feiúra: eu a amava e não a abandonaria até a
morte.
ANTÔNIO MARIA
RECIFE-PE = 1921-1964
domingo, 17 de janeiro de 2016
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