A Mulata
26 de janeiro
Aumentados com
a descoberta do Brasil os limites civilizáveis do mundo, compreendeu Jeová, do
seu trono de nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em nome
da sua gloria, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele encher,
porém, a terra maravilhosa, que se mostrava tão promissora? A raça branca, que
ele tanto amava e protegia, dominava, já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço
da humanidade e dos grandes mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que
a enchiam toda, e que se haviam derramado, aventureiros, pelas ilhas
circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se lamentava da sua condição e
do seu destino, coubera a África inteira, de que se tornara senhora. Fazia-se
mister, pois, criar um tipo novo, uma raça nova e bendita, que se apropriasse
com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das ondas.
Resolvido isso,
tomou o Senhor do seu camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material, em
suma, com que trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e,
misturando um pouco da pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente
igual na dosagem, de que fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta
morena e macia, em que se pôs a modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
Concluída a
obra, o estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que pusera
toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova Afrodita resumia, com os
seus olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas linhas voluptuosas e a sua
pele acentuadamente castanha, todos os encantos e todas as graças da criação.
Deslumbrado, encantado, embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a,
banhou-a com a luz dos seus olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma
idéia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um dente de
alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua, friccionou-lhe
pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços. Em
seguida, ordenou-lhe, recuando: - "Surge et ambula!"
A estatua
moveu-se, preguiçosa, e com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo
em que fora polida.
Jeová sorriu,
de novo, e, com orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço,
dizendo-lhe, como dissera a Constantino, na legenda sagrada: - "In hoc signo
vinces!"
A mulata abriu
os lábios num sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um gesto, o
caminho da terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em
direção ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém, batia, de novo, à porta
da oficina celeste.
- Você por
aqui, ainda? - estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou
os olhos, procurando justificar-se:
- Foi
impossível chegar ao meu destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das
nuvens.
- Por que? -
trovejou o Criador, indignado.
E ela, corando,
envergonhada: - As almas dos portugueses não me deixaram passar...
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886 / 1934
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