A Mesa Do Café
(Antônio Maria, in “Crônicas”,
26/09/1961)
Menino só sabe que é feio, no colégio, quando o padre
escolhe os que vão ajudar à missa, os que vão sair de anjo, na procissão, e os
que vão constituir a diretoria do Grêmio Mariano.
Eu soube que não era bonito em 1928, no Colégio Marista de
Recife. Nunca fui escolhido. Mas sem a menor tristeza, sem concordar até.
Aquele julgamento era precipitado, pois (estava convencido) ainda não havia
nada de definitivo sobre o bonito e o feio, a beleza e a fealdade. Quais seriam
as demarcações? A exata limítrofe, quem seria capaz de determinar? Se não
existia a explicação lógica do feio e do bonito, a notícia da minha feiura não
me causava mal nenhum. Ao contrário, livrava-me dos tributos que teria que
pagar se fosse bonito, ajudando missa e saindo de anjo, à frente das
procissões.
Na mesa do café, eramos cinco irmãos. Havia bolo de
mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d’água. Eramos cinco
irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era o feio. Então, por que
minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia
pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena não era,
porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente,
por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser
bruto, de tão livre, alegre e descuidado.
Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia, e ela sabia que eu
sabia. Em tudo a nossa cumplicidade. Na fatia do bolo, na talhada de requeijão
e no sobejo do seu copo d’água. Nossa cumplicidade até hoje existe, quando de
raro em raro nos encontramos.
Da mesa do café víamos pela vidraça os canteiros de terra
negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das
pálidas rosas da minha infância.
Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.
Minha mãe só tem um defeito. Não ser minha filha. Sempre
foi metida a saber mais que eu.
Só soube que era feio quando amei pela primeira vez. Vi-me,
então, corajosamente… e não era como gostaria de ser. No coração, um amor tão
bonito. Ninguém iria acreditar, mesmo dizendo, mesmo eu explicando, mesmo eu
jurando.
Apaguei a luz, tocava o concerto nro. 3 de Beethoven e, no
fnal, apesar do tom ser menor, o lirismo era tão ardente que tudo ficou
entendido, entre mim e a minha feiúra: eu a amava e não a abandonaria até a
morte.
ANTÔNIO MARIA
RECIFE-PE = 1921-1964
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