sábado, 12 de abril de 2014
POESIA
FERNANDO PESSOA
PORTUGAL =
1888-1935
O Cego E A Guitarra
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
CRÔNICA
JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS
RIO DE
JANEIRO-RJ = 1951
Os Faltares
Pisaram
no pé dele, e o homem do metrô sente falta dos xerifes nacionais.
Alguém
deve ter pisado no pé dele, e foi o gancho para o homem no vagão do metrô
começar seu discurso dizendo que por isso o Brasil não ia pra frente.
Falta um
Figueiredo, que prende e arrebenta, gritou. Faltava educação, faltava
compostura e, vou dizer mais, reiterava o homem do metrô como se em algum
momento fosse puxar do santinho para se apresentar em campanha, falta tirocínio
e, apontando para a cabeça, falta maxilar. Era um homem dos seus 50 e poucos,
de sotaque nordestino e muita indignação por terem pisado seu pé sem pedido de
desculpas.
Faltava
um Clodovil, mais macho que muitos aí, para dar modos aos cidadãos.
Falta um
David Nasser pra por na cadeia os pedófilos da mesma maneira que ele fez com os
matadores da Aída Curi. Falta um Rui Barbosa, baiano cabra da peste que colocou
na porta de casa em Londres uma tabuleta com o aviso "ensina-se inglês aos
ingleses". Aquilo, sim, era autoridade intelectual, vibrava o homem no
metrô que tinha tido o calo pisado por alguém e a partir dessa dor faz um
exercício de sociologia nostálgica sobre o abandono do brasileiro. Falta o
Felipão para entrar duro e dizer aqui não, alemão. Fica esse pessoal da Fifa
vindo aqui ensinar como se faz futebol e pororó pão duro e coisa e tal, como se
o brasileiro matasse estrangeiro no metrô. Faça-me o favor. Falta alguém que
diga comigo não, violão, e mande essa turma pentear macaco, tirar os mineiros
lá do fundo da terra, como se a gente é que matasse o Michael Jackson com os
psicorotrópicos. Falta tutano, ó, óleo de babosa, e novamente o homem do metrô
apontava para a cabeça de cabeleira farta.
O homem
do metrô tinha uma lista enorme de faltares nacionais e a Linha Um seria
pequena para ele relacionar todos. Faltava elegância, um chapéu na cabeça para
quem lhe pisara os pés tirar e dizer, desculpe, moço, foi sem querer, e faltava
também o Newton Cruz, aquele general maluco que saiu dando com o cassetete nos
carros enquanto gritava "está preso, está preso". Falta a vassoura do
Jânio pra varrer os corruptos. A culpa é do povo que vota mal e matou Carlos
Lacerda com os mendigos do Guandu, continuou o homem do metrô, e nada lhe era
obstado. Dizia o que bem queria, tumultuando os fatos e personagens da História
com a mesma naturalidade que passavam as estações.
Ninguém
sabe mais por que o Largo do Machado tem esse nome, afirmava, fazendo pausa
para alguém se apresentar com uma resposta, mas os outros passageiros fingiam
não ouvir o homem que soltava o verbo, trancado num vagão do metrô. Todo mundo
acha que é por causa do Machado de Assis, mas ele morava lá em cima no Cosme
Velho, não tem nada a ver. O Machado do largo não era com letra maiúscula, era
um machado mesmo que tinha em cima de um açougue, quatro séculos antes do Assis
ter nascido. Pergunta se algum candidato a vereador sabe disso, tentava mais
uma vez o homem do metrô provocar a interação com as outras pessoas. Como
ninguém se mexia, ele voltou a prantear as faltas no panteão nacional, gente
como o policial Mariel Mariscott, o becão Moisés e a jurada Araci de Almeida,
personagens que, segundo ele, matavam, entravam de sola e diziam as verdades,
atitudes que dariam um jeito nesse estado de coisas frouxo que está por aí.
Falta a mão pesada do Ted Boy Marino nos cornos dessa bandidagem.
Lembro
dele ter falado da falta que fazia o Haroldo de Andrade e das lições do
apresentador toda manhã no seu Debates Populares pela Rádio Globo. Falta taquicardia,
ele foi em frente, ali pela estação Cinelândia, falta alguém para sentir o
pulso do que quer a população.
Falta um
Pedro de Lara pra dizer na lata o que acha do calouro e mandar, meu filho, vai
cantar em outra freguesia. As autoridades constituídas não respeitam mais nem o
sigilo do contribuinte, e entram-e-saem nas contas dos outros da mesma maneira
que pisam no pé da gente no metrô e fica por isso mesmo. Falta o delegado
Nelson Duarte pra investigar, falta o inspetor Bellot. Os americanos estão saindo
do Iraque e vão acabar invadindo isso aqui porque já notaram, falta macho cabra
da peste. Ninguém dá um pio pro descalabro geral com o dinheiro público.
Falta um
Amaral Neto para se orgulhar do Brasil e mostrar nossas riquezas. Falta trazer
o Projeto Rondon de volta, o Mobral, e falta também o Coronel Fontenele pra
furar o pneu do safado que estacionar em lugar não permitido.
Falta
consideração com a ordem pública, continuou a desabafar o homem do metrô,
indicando às vezes a ponta do pé para ilustrar a indignação cívica que lhe
subia para a ponta da língua e movia o desabafo.
Isso
virou uma terra de ninguém, e sabe de quem foi a culpa? Do Cabral. Ele achou
que a Baía de Guanabara era um rio e tacaram lá, Rio de Janeiro. Pau que nasce
torto não tem jeito.
Se o
Brasil começou errado, vituperava cada vez mais indignado o homem no metrô, tem
que acabar errado, que é como tá isso hoje.
Falta um
delegado Padilha, que jogava um limão por dentro da calça do malandro e mandava
prender se fosse boca estreita, coisa de playboy energúmeno e sem moral. Ele
não deixava essas pulseirinhas do sexo, prendia no primeiro capítulo esse
tarado da novela, o Gerson.
Falta o
Tenório Cavalcanti, falta o Flávio pra quebrar os discos ruins, gente que
colocava respeito, e não essa bagunça. Não se investe mais em educação, como
fazia o Álvaro Vale, é só ignorância, só carrinho por trás e pisão no pé de
quem não machucou ninguém, afirmou o homem do metrô, saltando na estação Praça
Onze quando faltavam 15 minutos para o meio-dia da quinta-feira passada.
POESIA
EVERARDO NORÕES
CRATO-CE = 1944
Tua Fala
Tua fala parecia
uma rede de varandas,
branca,
no meio da sala.
(Uma coisa que envolve
e, ao mesmo tempo, se esquiva):
gesto seco de uma chama,
morrendo,
e sempre mais viva.
Era assim, tua palavra:
escorreita, sem medida.
Falas como pés descalços,
presos à relva macia.
Ou um cheiro de curral
quando a manhã principia.
(Tua fala parecia
a rede, toda bordada,
onde a noite amanhecia).
e, ao mesmo tempo, se esquiva):
gesto seco de uma chama,
morrendo,
e sempre mais viva.
Era assim, tua palavra:
escorreita, sem medida.
Falas como pés descalços,
presos à relva macia.
Ou um cheiro de curral
quando a manhã principia.
(Tua fala parecia
a rede, toda bordada,
onde a noite amanhecia).
De A Rua do Padre Inglês (2006)
CONTO
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886-1934
Razão
Poderosa
Não obstante as suas barbas
hirsutas, e aquele nariz aquilino, que parecia espiar, curioso, para o abismo
da boca dissimulada sob os bigodes, Abraão Salazar não era um homem triste. Na
Sinagoga, nas reuniões religiosas, era, mesmo, dos menos soturnos, a ponto de
ter sido censurado uma vez, com os olhos, pelo rabino Melchisedec.
Foi, por isso, motivo para
estranheza o modo porque aquele honrado descendente de Israel entrou, naquela
noite, no pequeno prédio da rua da Alfândega, onde se iam erguer novas preces
pela felicidade dos judeus espalhados por todo o mundo. E como ninguém tivesse
mais intimidades com ele do que o velho Isaac Labbareff, foi a este que coube o
direito de aproximar-se de Abraão, para uma pergunta fraternal.
- Estás doente? - indagou, com os
olhos muito pequenos, muito vivos, faiscando entre as sobrancelhas revoltas,
como dois diamantes escondidos na relva.
- Não. Uma desgraça.
Os olhos de Isaac refulgiram,
ainda mais.
- Deixaram de pagar-te algum
empréstimo? - indagou?
- Não - informou, seco, Abraão
Salazar.
E cerrando o cenho:
- Imagina tu, que, ao entrar em
casa, encontrei o Daniel, Daniel Shakaroff, aos abraços com minha mulher!
- E não o mataste? - indagou,
recuando, o velho judeu.
- Não. E é isso que me revolta.
Eu não podia matá-lo.
- Não podias? - rugiu o ancião.
- Abraão, os punhos contraídos,
os dentes cerrados, na raiva de
quem se sentiu manietado:
- Não sabes, então, que ele me
deve duzentos mil réis?
PIADA = Cantando Mal
A mulher do Luiz adorava cantar, mas o problema é que ela
cantava mal pra burro. Toda noite, depois da janta, era aquele martírio. Ela
começava a cantar e o Luiz saía de fininho para a varanda.
Uma noite ela se manca e, magoada, pergunta ao marido:
— Querido, você não gosta de me ouvir cantar?
Uma noite ela se manca e, magoada, pergunta ao marido:
— Querido, você não gosta de me ouvir cantar?
Ele responde:
— Querida, eu adoro ouvir a sua voz cantando só para mim!
Ela retruca:
— Então, se você gosta, porque vai sempre para a sacada?
Ele responde:
Ele responde:
— Eu só quero ter certeza de que os vizinhos não pensem que eu
estou batendo em você!
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