sábado, 12 de abril de 2014

CRÔNICA


JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS
RIO DE JANEIRO-RJ  =  1951

 
Os Faltares

 

Pisaram no pé dele, e o homem do metrô sente falta dos xerifes nacionais.
Alguém deve ter pisado no pé dele, e foi o gancho para o homem no vagão do metrô começar seu discurso dizendo que por isso o Brasil não ia pra frente.
Falta um Figueiredo, que prende e arrebenta, gritou. Faltava educação, faltava compostura e, vou dizer mais, reiterava o homem do metrô como se em algum momento fosse puxar do santinho para se apresentar em campanha, falta tirocínio e, apontando para a cabeça, falta maxilar. Era um homem dos seus 50 e poucos, de sotaque nordestino e muita indignação por terem pisado seu pé sem pedido de desculpas.
Faltava um Clodovil, mais macho que muitos aí, para dar modos aos cidadãos.
Falta um David Nasser pra por na cadeia os pedófilos da mesma maneira que ele fez com os matadores da Aída Curi. Falta um Rui Barbosa, baiano cabra da peste que colocou na porta de casa em Londres uma tabuleta com o aviso "ensina-se inglês aos ingleses". Aquilo, sim, era autoridade intelectual, vibrava o homem no metrô que tinha tido o calo pisado por alguém e a partir dessa dor faz um exercício de sociologia nostálgica sobre o abandono do brasileiro. Falta o Felipão para entrar duro e dizer aqui não, alemão. Fica esse pessoal da Fifa vindo aqui ensinar como se faz futebol e pororó pão duro e coisa e tal, como se o brasileiro matasse estrangeiro no metrô. Faça-me o favor. Falta alguém que diga comigo não, violão, e mande essa turma pentear macaco, tirar os mineiros lá do fundo da terra, como se a gente é que matasse o Michael Jackson com os psicorotrópicos. Falta tutano, ó, óleo de babosa, e novamente o homem do metrô apontava para a cabeça de cabeleira farta.
O homem do metrô tinha uma lista enorme de faltares nacionais e a Linha Um seria pequena para ele relacionar todos. Faltava elegância, um chapéu na cabeça para quem lhe pisara os pés tirar e dizer, desculpe, moço, foi sem querer, e faltava também o Newton Cruz, aquele general maluco que saiu dando com o cassetete nos carros enquanto gritava "está preso, está preso". Falta a vassoura do Jânio pra varrer os corruptos. A culpa é do povo que vota mal e matou Carlos Lacerda com os mendigos do Guandu, continuou o homem do metrô, e nada lhe era obstado. Dizia o que bem queria, tumultuando os fatos e personagens da História com a mesma naturalidade que passavam as estações.
Ninguém sabe mais por que o Largo do Machado tem esse nome, afirmava, fazendo pausa para alguém se apresentar com uma resposta, mas os outros passageiros fingiam não ouvir o homem que soltava o verbo, trancado num vagão do metrô. Todo mundo acha que é por causa do Machado de Assis, mas ele morava lá em cima no Cosme Velho, não tem nada a ver. O Machado do largo não era com letra maiúscula, era um machado mesmo que tinha em cima de um açougue, quatro séculos antes do Assis ter nascido. Pergunta se algum candidato a vereador sabe disso, tentava mais uma vez o homem do metrô provocar a interação com as outras pessoas. Como ninguém se mexia, ele voltou a prantear as faltas no panteão nacional, gente como o policial Mariel Mariscott, o becão Moisés e a jurada Araci de Almeida, personagens que, segundo ele, matavam, entravam de sola e diziam as verdades, atitudes que dariam um jeito nesse estado de coisas frouxo que está por aí. Falta a mão pesada do Ted Boy Marino nos cornos dessa bandidagem.
Lembro dele ter falado da falta que fazia o Haroldo de Andrade e das lições do apresentador toda manhã no seu Debates Populares pela Rádio Globo. Falta taquicardia, ele foi em frente, ali pela estação Cinelândia, falta alguém para sentir o pulso do que quer a população.
Falta um Pedro de Lara pra dizer na lata o que acha do calouro e mandar, meu filho, vai cantar em outra freguesia. As autoridades constituídas não respeitam mais nem o sigilo do contribuinte, e entram-e-saem nas contas dos outros da mesma maneira que pisam no pé da gente no metrô e fica por isso mesmo. Falta o delegado Nelson Duarte pra investigar, falta o inspetor Bellot. Os americanos estão saindo do Iraque e vão acabar invadindo isso aqui porque já notaram, falta macho cabra da peste. Ninguém dá um pio pro descalabro geral com o dinheiro público.
Falta um Amaral Neto para se orgulhar do Brasil e mostrar nossas riquezas. Falta trazer o Projeto Rondon de volta, o Mobral, e falta também o Coronel Fontenele pra furar o pneu do safado que estacionar em lugar não permitido.
Falta consideração com a ordem pública, continuou a desabafar o homem do metrô, indicando às vezes a ponta do pé para ilustrar a indignação cívica que lhe subia para a ponta da língua e movia o desabafo.
Isso virou uma terra de ninguém, e sabe de quem foi a culpa? Do Cabral. Ele achou que a Baía de Guanabara era um rio e tacaram lá, Rio de Janeiro. Pau que nasce torto não tem jeito.
Se o Brasil começou errado, vituperava cada vez mais indignado o homem no metrô, tem que acabar errado, que é como tá isso hoje.
Falta um delegado Padilha, que jogava um limão por dentro da calça do malandro e mandava prender se fosse boca estreita, coisa de playboy energúmeno e sem moral. Ele não deixava essas pulseirinhas do sexo, prendia no primeiro capítulo esse tarado da novela, o Gerson.
Falta o Tenório Cavalcanti, falta o Flávio pra quebrar os discos ruins, gente que colocava respeito, e não essa bagunça. Não se investe mais em educação, como fazia o Álvaro Vale, é só ignorância, só carrinho por trás e pisão no pé de quem não machucou ninguém, afirmou o homem do metrô, saltando na estação Praça Onze quando faltavam 15 minutos para o meio-dia da quinta-feira passada.

 

 

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