sábado, 12 de abril de 2014

CONTO


HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886-1934
 

Razão Poderosa

 
 

Não obstante as suas barbas hirsutas, e aquele nariz aquilino, que parecia espiar, curioso, para o abismo da boca dissimulada sob os bigodes, Abraão Salazar não era um homem triste. Na Sinagoga, nas reuniões religiosas, era, mesmo, dos menos soturnos, a ponto de ter sido censurado uma vez, com os olhos, pelo rabino Melchisedec.
Foi, por isso, motivo para estranheza o modo porque aquele honrado descendente de Israel entrou, naquela noite, no pequeno prédio da rua da Alfândega, onde se iam erguer novas preces pela felicidade dos judeus espalhados por todo o mundo. E como ninguém tivesse mais intimidades com ele do que o velho Isaac Labbareff, foi a este que coube o direito de aproximar-se de Abraão, para uma pergunta fraternal.
- Estás doente? - indagou, com os olhos muito pequenos, muito vivos, faiscando entre as sobrancelhas revoltas, como dois diamantes escondidos na relva.
- Não. Uma desgraça.
Os olhos de Isaac refulgiram, ainda mais.
- Deixaram de pagar-te algum empréstimo? - indagou?
- Não - informou, seco, Abraão Salazar.
E cerrando o cenho:
- Imagina tu, que, ao entrar em casa, encontrei o Daniel, Daniel Shakaroff, aos abraços com minha mulher!
- E não o mataste? - indagou, recuando, o velho judeu.
- Não. E é isso que me revolta. Eu não podia matá-lo.
- Não podias? - rugiu o ancião.
- Abraão, os punhos contraídos, os dentes cerrados, na raiva de quem se sentiu manietado:
- Não sabes, então, que ele me deve duzentos mil réis?

 

 

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