HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886-1934
Razão
Poderosa
Não obstante as suas barbas
hirsutas, e aquele nariz aquilino, que parecia espiar, curioso, para o abismo
da boca dissimulada sob os bigodes, Abraão Salazar não era um homem triste. Na
Sinagoga, nas reuniões religiosas, era, mesmo, dos menos soturnos, a ponto de
ter sido censurado uma vez, com os olhos, pelo rabino Melchisedec.
Foi, por isso, motivo para
estranheza o modo porque aquele honrado descendente de Israel entrou, naquela
noite, no pequeno prédio da rua da Alfândega, onde se iam erguer novas preces
pela felicidade dos judeus espalhados por todo o mundo. E como ninguém tivesse
mais intimidades com ele do que o velho Isaac Labbareff, foi a este que coube o
direito de aproximar-se de Abraão, para uma pergunta fraternal.
- Estás doente? - indagou, com os
olhos muito pequenos, muito vivos, faiscando entre as sobrancelhas revoltas,
como dois diamantes escondidos na relva.
- Não. Uma desgraça.
Os olhos de Isaac refulgiram,
ainda mais.
- Deixaram de pagar-te algum
empréstimo? - indagou?
- Não - informou, seco, Abraão
Salazar.
E cerrando o cenho:
- Imagina tu, que, ao entrar em
casa, encontrei o Daniel, Daniel Shakaroff, aos abraços com minha mulher!
- E não o mataste? - indagou,
recuando, o velho judeu.
- Não. E é isso que me revolta.
Eu não podia matá-lo.
- Não podias? - rugiu o ancião.
- Abraão, os punhos contraídos,
os dentes cerrados, na raiva de
quem se sentiu manietado:
- Não sabes, então, que ele me
deve duzentos mil réis?
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