segunda-feira, 23 de outubro de 2017
CONTO = Carlos Heitor Cony
NÃO SUPORTOU mais e foi
procurar o amigo escritor. Era amizade antiga, mas distante. De há muito o
considerava um péssimo caráter, capaz de cometer qualquer miséria desde que
tivesse lucro com uma mulher ou com um assunto que lhe desse inspiração. Aproveitava-lhe
a sabedoria, mas evitava contagiar-se com a devassidão de sua vida abominável.
Ele desejava mudar o nome do
prédio onde morava (Babilônia), aconselhara-se com o amigo, haveria uma reunião
de condomínio e o escritor incentivou-o, que fosse formidando ao fazer a
proposta.
- Formidando? Quê que é isso?
- Uma expressão clássica, Raul
Pompéia usava muito em "O Ateneu", o professor Aristarco era
formidando. Significa formidável, feroz, tonitruante.
- É isso aí! Serei formidando!
A reunião foi numa sexta-feira,
à noite, nada teve de formidanda. No sábado, ele voltou ao amigo.
- Como é? Você foi formidando?
- Formidando uma ova! Foi um
desastre!
- Mas por que diabo você quer
mudar o nome do prédio?
Abriu-se. Pela primeira vez na
vida, abria-se.
Tinha medo de ser traído. Sabia
que as mulheres depois de certa idade sofriam crises, as tentações eram muitas.
Ele achava que o nome "Babilônia" era um péssimo agouro. Mas
reconhecia que não adiantava mudar o nome do prédio.
- É. Não resolve mesmo, admitiu
o amigo.
- Você seria capaz de dar em
cima da minha mulher?
A pergunta, à queima-roupa,
desorientou o escritor, que apesar de cínico não estava preparado para ela.
- Não. Ela é muito magra.
- Era. Agora engordou um pouco.
Para ser fiel ao papel de
cínico, o amigo novamente admitiu:
- Bem, se está no ponto, por
que não?
- Você gosta de mulher gorda?
- Nada disso. Mas mulher magra
foi uma impostura dos costureiros, dos modistas. São, em geral, pederastas.
Odeiam a mulher. Querem os homens todos para eles e o melhor modo de eliminar a
concorrência é obrigar a mulher a ficar ossuda, sem carnes. As idiotas fazem
regime, ficam com as pernas que parecem palitos, a bunda vira uma tábua. Não é
à toa que os homossexuais terminam levando vantagens. Agora, veja, as fêmeas
bíblicas, a mulher das Escrituras, as mulheres de Renoir, de Rubens, as
madonas, a "Fornarina" de Rafael...
- Bem, eu não entendo muito
disso, mas acho que você tem razão.
- Uma porrada de razão! Os
homens gostam e se casam com mulheres magras para a exibição, o jogo social. Na
hora de rebolar na cama, preferem as gordinhas, as falsas magras...Todas as
amantes dos meus amigos são assim...
- Eu não tenho amantes, Otávia
me basta.
O amigo ia dizer qualquer
coisa, freou-se a tempo.
- Você acha que sua mulher
seria capaz de um adultério?
- Sei lá.
- Bom, em princípio todas as mulheres são capazes disso. Elas têm a matéria-prima do adultério: o sexo e o marido. Falta apenas o beneficiamento, que é o terceiro elemento, o amante, que não é difícil de encontrar. Mas fique sabendo, nenhuma mulher nasce adúltera, como os poetas que nascem poetas. Ela se faz, como os oradores. Ou melhor, o marido é que a faz adúltera.
- Bom, em princípio todas as mulheres são capazes disso. Elas têm a matéria-prima do adultério: o sexo e o marido. Falta apenas o beneficiamento, que é o terceiro elemento, o amante, que não é difícil de encontrar. Mas fique sabendo, nenhuma mulher nasce adúltera, como os poetas que nascem poetas. Ela se faz, como os oradores. Ou melhor, o marido é que a faz adúltera.
- Você já cometeu adultério?
O amigo fingiu que não ouvira
bem, mesmo assim tirou o corpo fora:
- Eu sou solteiro!
- Não é isso que quero dizer.
Pergunto se você já cometeu adultério com alguma mulher casada?
- Que eu saiba, não. Não gosto
de adultérios. Eles precisam de hotéis sórdidos, exigem códigos ridículos,
praticam ritos abomináveis, dificilmente se comete adultério em paz de
espírito.
- Isso é necessário? Essa paz
de espírito?
- Tanta mulher no mundo, porque
escolher uma que pode dar problema?
- O problema pode compensar.
Calaram-se por um tempo. O
escritor ofereceu um uísque.
- Bem, por hoje chega. Aprendi
bastante. Outro dia apareço.
- Você tem lido meus livros? -a
pergunta foi também à queima-roupa.
- Não. Otávia acha-os
indecentes e eu termino escondendo-os. Na última mudança, sumiram.
- Ainda bem. Qualquer que seja a solução do seu caso, mantenha-me informado. Você pode me dar bom assunto.
- Ainda bem. Qualquer que seja a solução do seu caso, mantenha-me informado. Você pode me dar bom assunto.
CARLOS HEITOR CONY
RIO DE JANEIRO-RJ, 1926
POESIA = Augusto dos Anjos
Versos Íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
AUGUSTO DOS ANJOS
CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB = 1884-1914
CONTO = Ivan Ângelo
Diálogo Difícil
Publicada na revista Veja, São
Paulo, 16 maio 2001.
Um Homem do interior esbarra no jargão de
uma secretária
Se ultrapassar a barreira representada
por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um
pouco complicado para urbanos costumados, que dirá quando vem alguém de longe,
aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que
recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar
– Financeira Saraiva, boa-tarde – diz
a secretária.
– Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva
está?
– Quem gostaria?
Para ouvidos traquejados pode estar ou
pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional
joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um
sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular.
– Gostaria não é bem o causo. Eu vim
mais por precisão do que por gosto.
A resposta não servia a ela, que
estava interessada no "quem" da pergunta. Já o interlocutor prestara
maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais
sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca
da informação que desejava:
– Mas quem gostaria?
– Gostaria de quê?
Para fugir do impasse, a secretária
resolveu usar a língua geral:
– O que eu estou perguntando é qual é
o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele?
Aí, para o homem do interior, já era quase
uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:
– Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o
doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater
com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.
– Como é que vou encaminhar o senhor sem
saber o seu nome?
– Posso até dar o nome, mas eu não disse que
queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...
A secretária, com a objetividade da
profissão tentou contornar:
– O senhor quer falar com ele?
– Gostaria – ironizou o homem.
– Bom, então, por favor, o senhor pode me
dizer o seu nome?
– Posso. É João Honorato.
Aí veio outra pergunta fatal das
secretárias:
– De onde?
Para quem conhece os códigos, a pergunta
significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não
conhece:
– De onde? Ah, sou de um lugar muito
pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar:
Desterro do Melo. Ouviu falar?
– Não, não ouvi – e lá veio outra pergunta
do repertório: – É particular, senhor?
– Aí a senhora me pegou. O Desterro?
Particular?
– O assunto, senhor, é particular?
– Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá
na boca do povo.
– Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar
passando para o doutor Saraiva?
– Não, eu mesmo passo.
A secretária vencida e grilada contatou o
patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma
conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos,
promessas, regateios, garantias. agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio
até ela:
– Dona Regina, o senhor João Honorato está
vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus,
fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje
em diante, por favor, não mais "quem gostaria?", "de
onde?", "estar passando", "qual é o assunto". Ele acha
que quem telefona sabe o que quer e com quem quer.
– Mas quem é esse João Honorato?
– O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi
minha parte para ele nesse fim de semana.
IVAN ÂNGELO = Barbacena-MG = 1936
POESIA = Manuel Bandeira
Na sombra cúmplice do quarto,
Ao contacto das minhas mãos lentas,
A substância da tua carne
Era a mesma que a do silêncio.
Do silêncio musical, cheio
De sentido místico e grave,
Ferindo a alma de um enleio
Mortalmente agudo e suave.
Ah, tão suave e tão agudo!
Parecia que a morte vinha...
Era o silêncio que diz tudo
O que a intuição mal adivinha.
É o silêncio da tua carne.
Da tua carne de âmbar, nua,
Quase a espiritualizar-se
Na aspiração de mais ternura.
MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE
= 1886-1968
Assinar:
Postagens (Atom)