Diálogo Difícil
Publicada na revista Veja, São
Paulo, 16 maio 2001.
Um Homem do interior esbarra no jargão de
uma secretária
Se ultrapassar a barreira representada
por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um
pouco complicado para urbanos costumados, que dirá quando vem alguém de longe,
aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que
recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar
– Financeira Saraiva, boa-tarde – diz
a secretária.
– Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva
está?
– Quem gostaria?
Para ouvidos traquejados pode estar ou
pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional
joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um
sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular.
– Gostaria não é bem o causo. Eu vim
mais por precisão do que por gosto.
A resposta não servia a ela, que
estava interessada no "quem" da pergunta. Já o interlocutor prestara
maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais
sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca
da informação que desejava:
– Mas quem gostaria?
– Gostaria de quê?
Para fugir do impasse, a secretária
resolveu usar a língua geral:
– O que eu estou perguntando é qual é
o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele?
Aí, para o homem do interior, já era quase
uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:
– Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o
doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater
com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.
– Como é que vou encaminhar o senhor sem
saber o seu nome?
– Posso até dar o nome, mas eu não disse que
queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...
A secretária, com a objetividade da
profissão tentou contornar:
– O senhor quer falar com ele?
– Gostaria – ironizou o homem.
– Bom, então, por favor, o senhor pode me
dizer o seu nome?
– Posso. É João Honorato.
Aí veio outra pergunta fatal das
secretárias:
– De onde?
Para quem conhece os códigos, a pergunta
significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não
conhece:
– De onde? Ah, sou de um lugar muito
pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar:
Desterro do Melo. Ouviu falar?
– Não, não ouvi – e lá veio outra pergunta
do repertório: – É particular, senhor?
– Aí a senhora me pegou. O Desterro?
Particular?
– O assunto, senhor, é particular?
– Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá
na boca do povo.
– Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar
passando para o doutor Saraiva?
– Não, eu mesmo passo.
A secretária vencida e grilada contatou o
patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma
conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos,
promessas, regateios, garantias. agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio
até ela:
– Dona Regina, o senhor João Honorato está
vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus,
fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje
em diante, por favor, não mais "quem gostaria?", "de
onde?", "estar passando", "qual é o assunto". Ele acha
que quem telefona sabe o que quer e com quem quer.
– Mas quem é esse João Honorato?
– O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi
minha parte para ele nesse fim de semana.
IVAN ÂNGELO = Barbacena-MG = 1936
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