domingo, 19 de março de 2017
CONTO = Humberto De Campos
A Judia
A colônia
israelita não possuía representante mais opulento que Isaac Aben-Abib. As suas
festas reuniam sempre o que havia de seleto entre os judeus, sendo de notar,
também a afluência de vultos representativos da cidade, alheios, embora, à sua
seita religiosa. Fornecedor do governo e amigo dos políticos, fazia parte da
alta sociedade carioca sem, contudo, se desligar do seu credo e, sobretudo, dos
seus companheiros de fé.
A reunião
daquela noite, em que o casal Aben-Abib comemorava o 22° aniversário da sua
constituição, era, por isso mesmo, um misto de mundanismo e solidariedade
religiosa. Os salões do suntuoso palacete, repletos e iluminados, fervilhavam
de uma sociedade encantadora, em que predominava, entre as figuras femininas, a
linha pura do tipo israelita.
Mais
formosa, porém, que qualquer outra, era, sem dúvida, Rachel Benoliel, a jovem
esposa de Elias Benoliel, dono de uma casa de penhores à rua Luís de Camões.
Alta, esbelta, magnífica, trazia nos olhos negros a umidade dos jogos da
Palestina, e essa gracilidade soberba das bravias corças do Líbano. E foi exatamente
para ela que, ao penetrar na festa, o dr. Epaminondas Borges, o conhecido
mundano e diplomata em disponibilidade, encaminhou a sua esperança de
conquistador profissional.
Clara e
linda, a boca sangrando, os dentes miúdos e brancos, tomava a formosa israelita
o seu pequenino cálice de licor, junto ao "buffet", em companhia de
duas amigas, quando, numa curvatura, risonho e, na sua opinião, irresistível,
Epaminondas Borges se aproximou.
— Madame
— disse, sorrindo, o monóculo cravado no olho; — eu seria o mais feliz dos
mortais se me fosse permitido matar a sede secular do meu coração nesse
pequenino cálice em que V. Excª. acaba de pousar a borboleta dos seus lábios
divinos!
A testa
ligeiramente franzida, as unhas rosadas cravando, como dois rubis a um topázio,
o cálice apenas tocado, Rachel Benoliel ouviu, calada, o galanteio. E quando o
insolente acabou, desfranziu a testa.
— Ah! o
doutor está enganado; mas, não é comigo, não! É ali com aquela minha amiga! —
disse, indicando outra.
E num
sorriso jovial, diabólico, desconcertante:
— O
doutor não sabe que é Rebeca, e não Rachel, que dá de beber aos camelos?
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886 / 1934
POESIA = Adelmar Tavares
Corpo E Sombra
“O corpo que hoje viste,
ao fim do dia,
Seguir para uma cova que
o esperava
Oitenta annos viveu... E
não cansava!
Quem cansou foi a sombra
que o seguia...
Oitenta annos em sua
companhia,
Arrastada por terra como
escrava!
Só quando elle no escuro
repousava,
Ella no escuro repousar
podia.
Oitenta annos! Liberta,
finalmente,
Agora que o meteram n’um
jazigo,
Sae lésta e leve, a
espairecer contente...
E parece que em jubilo
profundo,
Diz: - Emfim, só! Depois
de haver comtigo
Errado, quase um seculo
no mundo!...”
ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE
= 1888-1963
POESIA = Medeiros E Albuquerque
Árvore
A árvore agita no ar ao sopro da rajada
a fronde colossal. A ramaria ondula
e, quando o temporal mais desvairado ulula,
parece que ela quer desprender-se, agitada.
Mas todo anseio é vão. Quer quando o vento a oscula
numa carícia, quer quando a sua ramada
a borrasca sacode, a pobre, acorrentada
tem de ficar: ao solo a raiz a vincula.
Árvore eu sou também. Meu cérebro se expande.
freme ao sopro do Bem, do Belo, do que é grande,
de tudo o que de nobre ele adivinha ou sente.
Mas em vão, em vão sonho, em vão quisera, um dia,
poder ir onde vai a minha fantasia...
Sempre a raiz me prende a terra, ingloriamente...
MEDEIROS E ALBUQUERQUE
RECIFE-PE = 1867-1934
CRÔNICA = Rubem Alves
Arte De Ver
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou
ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais
da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as
cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria! Aconteceu, entretanto, faz
uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de
vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Entretanto, cortada a cebola,
eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola.
Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a
impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente
a cebola, de objeto a ser comido se transformou em obra de arte para ser vista!
E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões...
Agora tudo o que vejo me causa espanto...”
Ela se calou esperando o meu diagnóstico. Eu me
levantei, fui até a estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de
Pablo Neruda. Procurei a “Ode à cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular
que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola
igual àquela que lhe causou assombro: “...rosa de água com escamas de
cristal...” Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas
ensinam a ver.”
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os
olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão
científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica:
o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo
na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso é afirmou: “A árvore que o
sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei isso por experiência própria.
Quando vejo os ipês floridos sinto-me como Moisés, diante da sarça ardente: ali
está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa
decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa, porque ele
sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a
beleza. Só viam o lixo.
A Adélia Prado diz: “Deus de vez em quando me tira a
poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. O Drummond viu uma pedra e não
viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. “Não é
bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela
para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro. O ato de ver não é
coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a
primeira tarefa da educação era ensinar a ver. O Zen Budismo concorda e toda a
sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do
“terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no Zen Budismo mas o fato é
que escreveu “ Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos
meus olhos se abriram...”
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de
dois discípulos na companhia de Jesus Ressuscitado. Mas eles não o reconheciam.
Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão “os seus olhos se abriram”.
Vinícius de Moraes adota o mesmo mote no “Operário em Construção”: “De forma
que, certo dia, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao
constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão – era ele
quem fazia, ele um humilde operário, um operário em construção”.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são
guardados. Se os olhos estão na Caixa de Ferramentas eles são apenas
ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objectos, sinais
luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao
fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas quando
os olhos estão na Caixa dos Brinquedos eles se transformam em órgãos de prazer:
brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o
mundo.
Os olhos que moram na Caixa de Ferramentas são os olhos dos
adultos. Os olhos que moram na Caixa dos Brinquedos são os olhos das crianças.
Para ter olhos brincalhões é preciso ter as crianças por nossas mestras.
Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus
Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim ensinou-me
tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas
flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e
olha devagar para elas...”
Por isso, porque eu acho que a primeira função da educação
é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de
professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a
apontar para os assombros que crescem nos desvão da banalidade quotidiana. Como
o Jesus Menino do poema do Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos
vagabundos...”
FIM
RUBEM ALVES
BOA ESPERANBÇA-MG, 1933-2014
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