domingo, 19 de fevereiro de 2017
POESIA = Mauro Mota
O ESPELHO
Na Parede da sala,
essa porta de vidro,
ou somente a parede
essa porta fingida?
Diante dela fica
o duplo cara a cara.
Torna-se, ao mesmo tempo,
prisioneiro e testemunha
dessa prisão perpétua,
desse exílio no espelho
irônico, liberto
de não ser o que era.
Quem vai ao próprio encontro
de cada vez é outro
no cristal da Boêmia
e na moldura de ouro.
É a autocompanhia
nessa peça da casa,
exígua, todavia,
mais profunda e habitada,
Quem bate do outro lado
dessa porta? quem chama?
Que substância mora
no cristal e no estanho?
MAURO MOTA
RECIFE-PE, 1911-1984
POESIA = Zila Mamede
Rio
Capibaribe
Nos mistérios do rio me perdi,
Na amargura do rio me encontrei.
Na sombra que beijava a flor do rio
Senti minha saudade anoitecer.
Na amargura do rio me encontrei.
Na sombra que beijava a flor do rio
Senti minha saudade anoitecer.
O rio fez-se ventre onde nasci:
Sua água tem o pranto que chorei!
Quando o vento, pousando o leito, frio,
Quis da espuma meu sangue recolher.
Sou pontes, sou granito, sou letreiros,
Sou mangues, sou barcaças, sou cantiga
Desenhando petróleos na torrente.
Sou rio
que compõe os seus barqueiros
Dos soluços da margem que, ora, antiga,
Gera flores e lama, indiferente.
Dos soluços da margem que, ora, antiga,
Gera flores e lama, indiferente.
ZILA
MAMEDE
NOVA PALMEIRA-PB = 1928–1985
CONTO = Humberto de Campos
O Netinho
Foi pelo carnaval que a Marina cometera
aquela irremediável leviandade. O rapaz era insinuante, bonito, maneiroso, e
ela, atordoada, acompanhou-o por toda a parte. No dia seguinte, ao entrar no
"atelier" de que era costureira, debalde procurou reconstituir a
cena, para saber o que tinha feito. Um arrepio percorria-lhe o corpo,
sacudindo-a. E a mocinha fechava os olhos, atônita, horrorizada com a sua
situação.
Ao fim de um mês e pouco, principiaram a
aparecer-lhe uns sintomas esquisitos. Uma inapetência irresistível afastava-a
da mesa, à hora das refeições. Tonteiras, vertigens, vômitos ligeiros, vontade,
uma vez por outra, de morder limões ou laranjas bem azedas, - completavam este
quadro de sintomas. E em setembro, quando não,lhe era mais possível disfarçar o
seu estado, deixou a moça o emprego, recolhendo-se à casa da mãe,
confessando-lhe o mau passo que dera.
Marina não era, porém, criatura que se
preocupasse muito tempo com essa futilidades. Ela não conhecia o verso dos
"Lusíadas" em que se fala do destino a dar-se "aquilo que para
dar lhe dera a natureza", mas possuía uma noção amável da vida. Se não
fizera cousa boa, a consciência não a atormentava muito, arrancando-lhe pranto
do coração. E, por isso, não compreendia aquela exigência da velha mãe, a
desventurada. Dona Eleonora, ordenando-lhe que não pusesse pé fora de casa
antes do desenlace do drama.
Esse sedentarismo revoltava a rapariga. E
foi revoltada que ela, um dia, se vestiu à vontade, pôs o chapéu, e saiu para a
cidade, a escandalizar as amigas, e os conhecidos, com aquela obesidade
insolente.
À tarde, voltou. E foi uma tempestade.
- Minha filha da minh'alma, - gemia a pobre
mãe, desolada. - Que é que tu foste fazer?... Tu estás maluca, minha filha?...
- Ora, mamãe! - retrucou a moça,
estabanada. - Eu não fiz nada de mais.
E as mãos nos quadris ondulados, a carinha
transformada numa careta:
- Eu fui levar o seu netinho para
passear...
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886
/ 1934
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