O Rio
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.
O rio para
mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a
barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.
Vinham
cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e,
enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças
agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a
conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que
atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do
outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho
não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia
para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe.
Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O
Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo
desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era
impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia
força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim
da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi
nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do
desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de
cinturão e gritou para mim:
- Vou
dizer ao velho!
Não disse
nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e
apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de
vida.
JOSÉ LINS DO REGO
PILAR-PB
= 1901-1957
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