Assunto Para Um Conto
Como
sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo,
aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos
exigente e menos sanguinário que o das Mil e Urna Noites, sou
constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais
não dou atenção, porque eles em geral não têm uma idéia aproveitável.
Entre
esses indivíduos há um funcionário aposentado, que na sua roda é tido por
espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar, diz-me,
invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteção,
o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que aliás não lhe foi pedido,
conclui, também invariavelmente:
-
Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto!
Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh'o mandarei.
Há
dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as idéias, sentei-me por acaso
ao lado do meu Mecenas, que na forma do costume começou por invectivar a minha
preguiça, e prosseguiu assim:
-
Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um
conto...
-
Já m'o disse mais de vinte vezes!
-
Qualquer dia lá lh'o mandarei.
-
Não! Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e
não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro,
temos muito tempo... Venha o assunto!...
-
Não; agora não!
-
Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe, e o
senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu!
-
Ora essa!
-
Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo
Garrido, todas as vezes que o encontrava, um calembour para ser encaixado
na primeira peça que ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembour!
-
Eu tenho o assunto do conto, explicou o Mecenas, mas queria escrevê-lo...
-
Para quê? Basta que m'o exponha verbalmente.
-
Então lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na
Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo
que morreu lá um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que
esse homem não deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela
nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer ao
tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que
existem aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este
mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica
eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. - Que tal?
-
Muito bom!
-
Você não acha aproveitável este assunto?
-
Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever
o conto e publicá-lo no próximo número d'O Século!
-
Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que não me
falta é imaginação!
-
Muito obrigado; não me despeço do favor.
Como
vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.
ARTHUR AZEVEDO
SÃO
LUÍS-MA = 1855-1908
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