domingo, 29 de maio de 2016
CRÔNICA = Artur Azevedo
Assunto Para Um Conto
Como
sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo,
aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos
exigente e menos sanguinário que o das Mil e Urna Noites, sou
constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais
não dou atenção, porque eles em geral não têm uma idéia aproveitável.
Entre
esses indivíduos há um funcionário aposentado, que na sua roda é tido por
espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar, diz-me,
invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteção,
o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que aliás não lhe foi pedido,
conclui, também invariavelmente:
-
Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto!
Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh'o mandarei.
Há
dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as idéias, sentei-me por acaso
ao lado do meu Mecenas, que na forma do costume começou por invectivar a minha
preguiça, e prosseguiu assim:
-
Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um
conto...
-
Já m'o disse mais de vinte vezes!
-
Qualquer dia lá lh'o mandarei.
-
Não! Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e
não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro,
temos muito tempo... Venha o assunto!...
-
Não; agora não!
-
Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe, e o
senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu!
-
Ora essa!
-
Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo
Garrido, todas as vezes que o encontrava, um calembour para ser encaixado
na primeira peça que ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembour!
-
Eu tenho o assunto do conto, explicou o Mecenas, mas queria escrevê-lo...
-
Para quê? Basta que m'o exponha verbalmente.
-
Então lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na
Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo
que morreu lá um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que
esse homem não deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela
nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer ao
tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que
existem aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este
mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica
eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. - Que tal?
-
Muito bom!
-
Você não acha aproveitável este assunto?
-
Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever
o conto e publicá-lo no próximo número d'O Século!
-
Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que não me
falta é imaginação!
-
Muito obrigado; não me despeço do favor.
Como
vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.
ARTHUR AZEVEDO
SÃO
LUÍS-MA = 1855-1908
POESIA = Bastos Tigre
Poesia
Embora a turba iconoclasta, em
fúria,
Pretenda depredar os teus altares,
Resistirás! Sobrepairando à
injúria,
Farás honra aos teus numes
tutelares.
Dos teus próprios fiéis fere-te a
incúria;
Abandonam-te às chufas, aos esgares
Dos novos corifeus de língua
espúria,
De idéias parvas e expressões
alvares.
Mas viverás, Poesia soberana,
Pelo esplendor solar que te
ilumina,
Dando-te a excelsa forma
parnasiana.
Não tombará teu nobre culto em
ruína,
Pois és, Poesia, o anseio da alma
humana
De conseguir a perfeição divina.
BASTOS TIGRE
RECIFE, 1882 = 1957
POESIA = Fernando Pessoa
O Cego E A Guitarra
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
FERNANDO PESSOA
PORTUGAL, 1888-1935
CRÔNICA = Carlos Drummond de andrade
Definitivo
Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das
coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos o que foi
desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas.
Por todas as cidades que gostaríamos de ter
conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos.
Por todos os filhos que gostaríamos de ter tido
juntos e não tivemos.
Por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e
paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao
cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas
mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela
euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o
futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos
aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer
por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento
intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.
Como aliviar a dor do que não foi vivido? A
resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o
desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na
prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos
também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG
= 1902-1987
Assinar:
Postagens (Atom)