O Orador
Janeiro, 1953
Ônibus
pintados de vermelho e amarelo, automóveis, caminhões se cruzam na manhã
paulistana. Entre plátanos e palmeiras passam normalistas, e ora atravessam
zonas de sombra clara, ora seus cabelos brilham ao sol. Há homens rápidos. Tudo
está amanhecendo com tanta força, que eu também amanheço de remotas aflições,
eu emerjo com energia das sombras da noite e me planto na varanda, ao sol. Vou
ao chuveiro, a água me bate com força alegre, volto à minha varanda alta, sobre
os veículos e os transeuntes matinais, tenho a vontade insensata de fazer
discursos.
“Paulistas!
Mais um dia amanhece!” Seria preciso fazer um discurso assim, seria preciso ter
uma voz poderosa e firme, capaz de deter os transeuntes – para lhes anunciar
esta manhã, a sua glória e potência, e lhes dar a todos a consciência clara da
manhã. Frases bem lavadas, úmidas de vigor matinal.
“Paulistas!”
O homem de chapéu se deteria atônito, a normalista de cabelos castanhos, rindo,
diria para a outra, me apontando – “olhe um homem maluco” (mas depois as duas
ficariam sérias), e o rapaz de roupa cinzenta recearia que eu me fosse lançar
da varanda ao solo para me matar, talvez caísse em cima dele.
“Paulistas!
Vossa clara e forte manhã me faz bem, e digo ao povo e digo aos poderosos
caminhões, e às grandes árvores e ao sol: obrigado! E à brisa da manhã eu
agradeço e digo: leva para longe, leva pelos ares cheios de sol os restos de
minha tristeza noturna, lava o ar e a alma deste homem, brisa! Eu estou sólido
e limpo! Respiro fundo, tenho prazer em respirar e viver, sou capaz de fazer a
justa guerra e empreender imediatamente a reconstrução das cidades, vou
embarcar nas monções, trarei pedras e índios e horizontes largos – contai
comigo, manhã paulista!”
Mas
permaneço calado, de pé, parado, ao sol, na varanda, perante as árvores altas,
mais alto que as árvores mais altas. Dissipam-se em mim os venenos da noite.
Talvez apenas o meu corpo estremeça um pouco. Talvez apenas eu receie sair da
zona do vento e da luz, reentrar na sombra do quarto, reencontrar no espelho o
homem torturado e vazio, aquele cujo coração alguém pôde apertar nas mãos de
unhas finas, dolorosamente, e jogá-lo ao chão como se fosse um lenço usado,
aquele a quem no fundo da noite deram a beber os filtros da melancolia – aquele
homem fraco e aflito, aquele insensato.
RUBEM BRAGA
CACHOEIRO
DO ITAPEMIRIM-ES = 1913-1990
Um comentário:
Muito bom
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