A Primeira Mulher Do Nunes
Hoje, pela volta do meio-dia, fui tomar um táxi naquele
ponto da Praça Serzedelo Correia, em Copacabana. Quando me aproximava do ponto
notei uma senhora que estava sentada em um banco, voltada para o jardim; nas
extremidades do banco estavam sentados dois choferes, mas voltados em posição
contraria, de frente para o restaurante da esquina. Enquanto caminhava em
direção a um carro, reparei, de relance, na senhora. Era bonita e tinha ar de
estrangeira; vestia-se com muita simplicidade, mas seu vestido era de um linho
bom e as sandálias cor de carne me pareceram finas. De longe podia parecer
amiga de um dos motoristas; de perto, apesar da simplicidade de seu vestido,
sentia-se que nada tinha a ver com nenhum dos dois. Só o fato de ter sentado
naquele banco já parecia indicar tratar-se de uma estrangeira, e não sei por
que me veio a ideia de que era uma senhora que nunca viveu no Rio, talvez
estivesse em seu primeiro dia de Rio de Janeiro, entretida em ver as árvores, o
movimento da praça, as crianças que brincavam, as babás que empurravam
carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha sentido isso tudo de relance, mas
a impressão que tive é que ela tinha a pele e cabelos muito bem tratados para
não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa posição, deu-me a impressão de
estar fruindo um certo prazer em estar ali, naquele ambiente popular, olhando
as pessoas com um ar simpático e vagamente divertido; foi o que me pareceu no rápido
instante em que nossos olhares se encontraram.
Como o primeiro chofer da fila alegasse que preferia um
passageiro para o centro, pois estava na hora de seu almoço, e os dois carros
seguintes não tivessem nenhum chofer aparente, caminhei um pouco para tomar o
que estava em quarto lugar. Tive a impressão de que a senhora se voltara para
me olhar. Quando tomei o carro e fiquei novamente de frente para ela, e
enquanto eu murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema – notei que ela
desviava o olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado de um
pressentimento, eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu. Olhei
para a senhora, mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei tocar, mas
enquanto o velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui possuído pela
certeza súbita e insistente de que acabara de ver a primeira mulher do Nunes.
- Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me
disse uma vez um amigo.
- Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me
disse outra vez outro amigo.
Isso aconteceu há alguns anos, em São Paulo, durante os
poucos meses em que trabalhei com o Nunes. Eu conhecera sua segunda mulher, uma
morena bonitinha, suave, quieta – pois ele me convidara duas vezes a jantar em
sua casa. Nunca me falara de sua primeira mulher, nem sequer de seu primeiro
casamento. O Nunes era pessoa de certo destaque em sua profissão e afinal de
contas um homem agradável, embora não brilhante; notei, entretanto, que sempre
que alguém me falava dele era inevitável uma referência à sua primeira mulher.
Um casal meu amigo, que costumava passar os fins de semana
em uma fazenda, convidou-me certa vez a ir com eles e mais um pequeno grupo.
Aceitei, mas no sábado fui obrigado a telefonar dizendo que não podia ir.
Segunda-feira, o amigo que me convidara me disse:
- Foi pena você não ir. Pegamos um tempo ótimo e o grupo
estava divertido. Quem perguntou muito por você foi a Marissa.
- Quem?
- A primeira mulher do Nunes.
- Mas eu não conheço …
-Sei, mas eu havia dito a ela que você ia. Ela estava muito
interessada em conhecer você.
A essa altura eu já sabia várias coisas a respeito da
primeira mulher do Nunes; que era linda, inteligente, muito interessante, um
pouco estranha, judia italiana, rica, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes
e uma pele maravilhosa – “parece que está sempre fresquinha, saindo do banho”,
segundo a descrição que eu ouvira.
Quando dei de mim eu estava, de maneira mais ingênua, mais
tola, mais veemente, apaixonado pela primeira mulher do Nunes. Devo dizer que
nessa ocasião eu emergia de um caso sentimental arrasador – um caso que mais de
uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e em que eu mesmo, provavelmente,
mais de uma vez, passei os limites do ridículo. Eu vivia sentimentalmente uma
hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a lembrança da história que
passara me doía um pouco e me amargava muito. Além disso minha situação não era
boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza de me dizer isso, quando
bêbado – que eu estava decadente em minha profissão. Outros diziam que eu
estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins, de moral baixa e ainda por cima de
pouco dinheiro e pequenas dívidas mortificantes. Naturalmente eu me distraía
com uma ou outra historieta de amor, mas saía de cada uma ainda mais entediado.
A imagem da primeira mulher do Nunes começou a aparecer-me como a última
esperança, a única estrela a brilhar na minha frente. Esse sentimento era mais
ou menos inconsciente, mas tomei consciência aguda dele quando soube que ela
ganhara uma bolsa esplêndida para passar seis meses nos Estados Unidos.
Senti-me como que roubado, traído pelo governo norte-americano. Mas a notícia
veio com um convite – para o jantar de despedida da primeira mulher do Nunes.
Isso aconteceu há quatro ou cinco anos. Mudei-me de São
Paulo, fiz algumas viagens, resolvi parar mesmo no Rio – e naturalmente me
aconteceram coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos últimos tempos de nossas
relações, eu me distanciara dele por um absurdo constrangimento, o pudor pueril
do que ele pudesse pensar no dia em que soubesse que entre mim e a sua primeira
mulher… Na realidade nunca houve nada entre nós dois; nunca sequer nos
avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao jantar de despedida; depois eu
soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi alguém dizer que a encontrara
em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela
perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.
Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo
meio-dia, na Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranqüila. Assim era a
imagem que eu fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente
cordial e vagamente irônico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse
uma espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você; eu sou Marissa, a primeira
mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”
R U B E M B R A G A
CACHOEIRO
DO ITAPEMIRIM-ES , 1913-1990
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