R A
U L P O M P É I A
ANGRA
DOS REIS-RJ = 1863 / 1895
Tílburi
De Praça
Não
encontraram por aí minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por
uma porta, ela por outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com
vontade. Eu entrava por um lado, ela entrava por outro...
A
nossa vida de casados é uma verdadeira questão aberta. Entrar e sair é tudo a
mesma cousa. Acontece, porém, que ela está sempre fora e eu nunca estou dentro.
Já
me disseram: Cuidado, João, tua mulher tem amantes... Eu estou de olho... Não
há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna...
Na
rua eu a espio... Onde ela entra entro eu atrás.
Casei,
todos sabem, não foi por dinheiro: tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou
antes, por compaixão. Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos
pretos por baixo, que não tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim
docemente. Eu tenho os meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante
daquela formosíssima soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de
cinqüenta não namora; os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o
luar dos balcões tem reumatismos. Desde que há meia dúzia de prédios, é logo
casamento...
Foi
o diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Eu, viúvo
de uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus
cômodos, casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que logo ali,
começava a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na
hora do recebo a vás... Não faz mal, pensei porém, gosto dela... que diabo! se
casar com outra, não poderá suceder a mesma cousa? Vá! é um gosto ao menos. E
atirei-me de cabeça no abismo... Matrimônio é assim. A primeira cousa que um
marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo atordoado. Senão, não
casa...
Eu
cravei um olhar na minha noiva.
Ia
divina, num simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me.
Pareceu-me sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando
e zumbindo. Casei-me...
Pois
bem, daí para cá, é isto... eu por uma porta, ela por outra, em cabra-cega.
Às
vezes, passamos um pelo outro. Ela a caminhar na sua vida, eu, na minha,
espiando.
Ela
sorri-me; eu disfarço, coro e vou seguindo para adiante.
Ora,
meus senhores, não me dirão como hei de pegar minha mulher? ~ isto:
Tempo-será-de-min-c-o-có!... Toda a vida.
Quanto
a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro...
Vem
cá em casa o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de
olho... Ele é bonitote, correto, conversa, graceja, tem uma maneirazinha
faceira de não fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo.
Fuma
um charuto de primeira qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar...
Às vezes mesmo, em minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma
expressão faceira, meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da
tarde.
Até
eu fico seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os
bambus, as cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as
cigarras, e os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais,
extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os
três, recostados nas chaises-longues, bebendo crepúsculo.
Ela
é a primeira que se levanta.
—
Que insipidez! exclama. Ora a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!
E,
então, agita-se como uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu
dizer, que acabasse de sair daquele imenso lago de morbidez em que nos
perdíamos.
—
Vamos passear! Vamos passear!
E,
então, com uma graça que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o
leque as letras azuis dos charutos.
Ah!
a diabinha adorável! e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora, será porque eu
não lhe agrado? Mas há agrado que eu, mesmo de longe, não lhe faço... Será porque
eu não sou bastante?... Mas, que diabo! ela daquele tamaninho...
Mas,
reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há dúvida: mas
é só namoro garanto-lhes... Depois, depois...
Depois
eu estou de olho...
Não
tenho repartição que me prenda... não tenho obrigação de hora certa... tenho os
meus prédios... Posso espiá-la dia e noite... Não! amante ela não tem, posso
afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu mal... Quanto ao mais,
é só passear, passear. O que a perde é o passeio.
Mas
por que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra
esquina, quando me vê em frente e deixa-me com cara de burro em plena
rua-da-amargura, em plena rua-do-sacramento, devera eu dizer?!...
Já
visitei uma sonâmbula:
Por
que não há meio de encontrar minha mulher?
—
Espie, disse-me ela.
—
Tenho espiado... Ainda, outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito...
Perguntei por ela. Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes.
Examinei... O lugar mais sério deste mundo!... Daí a pouco, um amigo, (o mesmo
das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira
ensaiando um chapéu...
Contei
à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha vigilância...
A
tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas e grande pasta de
cosmético na testa como uma aba de boné... Sorriu-se. Retirou-se a deitar
cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com alguma
pimenta de malícia na voz.
—
Meu senhor, o coração da mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e
definir de uma só maneira, mas no ponto da sua consulta, eu creio que não erro,
com esta exposição da minha experiência: Há corações fechados que são como
portas de que se perde a chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte
ensine como. Então, é a imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as
casas seguras, onde a gente entra, sem custo instala-se, faz família dentro, e
aí chega a netos tranqüilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a
um afeto pela frente, diante da sociedade; a outro afeto pelos fundos, diante
da indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é
possível; mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações
hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente,
pagando à parte o seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações
bodegas, que é um horror...
Mas,
há uma espécie curiosa de corações, um produto das sociedades desenvolvidas,
para a qual chamo a sua atenção: é o coração volante, e o coração rodante, que
aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali, a tanto por hora, a tanto por
mês, o coração tílburi de praça, que aceita o passageiro em qualquer canto, que
dobra a esquina, que corre, que pára, que vem, que desaparece, que passa pela
gente às vezes, juntinho, sem que se possa ver quem vai dentro...
Eu
compreendi vagamente. A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi. Ora
minha mulher um tílburi!...
Pedi
que esclarecesse.
—
Nada mais lhe digo. Saiba entender...
Ora
bolas!... E, fiquei na mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida
mulher que eu não tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como
um fim de história de meninos.
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