SÉRGIO SANT’ANNA
RIO DE
JANEIRO-RJ = 1941
Estudo Para Um
Conto
"Haverá uma mulher deitada. Caída
sobre uma cama. Talvez bêbada, ou drogada. Sua respiração, quase imperceptível,
às vezes é atravessada por um longo suspiro, um sobressalto.
A cortina esvoaça. O corpo da mulher, no
quarto escuro, torna-se visível e invisível de acordo com o agitar-se da leve
cortina. Há um anúncio luminoso no velho prédio em frente. Mostra um
par bailando, como bonecos mecânicos, ao ritmo sincopado das luzes. A todo
instante acende-se o letreiro: Acadêmico, Dancing. A vírgula é um rabinho
saltitante.
Tudo se apaga por uma fração de segundo, a
intervalos regulares.
Ao se ver novamente a mulher, ela terá
alterado sua posição na cama. Descobrem-se meias com ligas. A porta do armário
está aberta. Contornos de vestidos.
Misturam-se, no luminoso, as cores azul,
vermelha, amarela, verde, fazendo reverberar a pele pálida da mulher. Ela nunca
toma sol. Haverá uma cicatriz em seu rosto.
Supõe-se, evidentemente, que a mulher terá
alguma relação com o Acadêmico, Dancing.
Talvez tenha vindo de lá, há pouco. Deve
ser uma dançarina profissional. Dessas que dançam com os fregueses, saem com
eles.
De vez em quando poderá dizer, como se nem
ela própria acreditasse:
– Vou juntar dinheiro para uma operação
plástica.
O rufião que a 'protege' dará de ombros ao
ouvir isso.
Não se sabe a proveniência dessa cicatriz.
Ou melhor, não se sabe se isso será revelado. De boa coisa não virá, claro.
De qualquer modo, a cicatriz será um
elemento essencial dentro dessa composição. Existe um outro homem, mais velho,
sempre de terno, que costuma vir dançar com a mulher e pede a ela para não
remover a cicatriz. É justamente isso que...
Ela ri, gosta de ser objeto desse tipo de
desejo e antes simulava orgasmos. Ele pediu que ela parasse com isso. Gosta
mesmo é da pele branca contrastando com os pêlos pubianos, o reflexo nela das
luzes, o azulado, o vermelho, a cicatriz.
Há um aquário no quarto, também recebendo
aquela luminosidade intermitente. Como será a vida interior de um peixe? Quem
alimenta esses peixes? Na verdade não importa, eles são adereços vivos dentro
de um ambiente frívolo, com uma penteadeira velha sobre a qual estão largados
cosméticos, uma caixinha de couro com jóias de fantasia.
Mas quem vê a mulher dessa posição, no
interior do quarto, de frente para a janela e a cama? Os peixes? Também não
importa, é como um quadro encerrado à noite numa galeria ou museu.
Haverá também um plano inferior nesse
quadro, nessa mulher. Não que ela esteja desenvolvendo um processo de
associação de idéias. São antes imagens ou percepções que logo se desfazem,
anestesiadas. Alguma memória recende de uma outra mulher, uma colega, que
injeta nessa mulher do conto, com uma agulha, o conteúdo de uma seringa, no
banheiro de damas do Acadêmico, Dancing. Depois a outra a acaricia nos seios e
entre as coxas. Depois há pancadas fortes na porta do banheiro. E o rufião a
terá arrastado até o quarto, onde lhe deu duas bofetadas, ela sendo jogada – ou
se jogando – sobre a cama. A cama com uma coberta cor-de-rosa.
A mulher ali, esperando mais. Porradas ou
outra coisa. Mas não. Ele saiu, batendo a porta. Talvez volte mais tarde. Ou
nunca. Poderá dar ou levar um tiro nessa mesma noite. Ou apenas irá dormir com
outra, não se sabe.
A porta do quarto não foi trancada, a
mulher permanece assim, com sua cicatriz, suas ligas nas coxas brancas
recebendo as cores do luminoso, desarmada. Como se ele, o rufião, ou qualquer
outro, pudesse entrar a qualquer momento e possuí-la. Pode-se fazer dela o que se
quiser.
Sons, ruídos da rua, noite de sexta ou
sábado. De repente, se poderá ouvir passos na escada. De sapatos de salto alto,
uns. Outros de homem, na madeira que range. Passos que penetram de algum modo
na consciência da mulher deitada. Penetram também no quarto ao lado, separado
por uma divisão tênue. O homem é silencioso, mas, a mulher, escuta-se
nitidamente quando um dos sapatos de salto alto depois o outro são chutados
para longe, batendo contra algum obstáculo para cair secamente no chão.
A mulher do outro ri, enquanto o homem geme
dentro dela. É possível que ela apenas tenha levantado o vestido e tirado a
calcinha, para que ele a possuísse. A mulher daqui, deste quarto, estará
acariciando, entorpecida, o próprio sexo. Deita-se de bruços e goza, impregnada
do que chega do outro quarto, mas amanhã terá se esquecido disso. Nada, então,
haverá se passado. A outra, lá, solta uma gargalhada depois de tudo terminado,
rapidamente.
Sente-se o cheiro dos corpos, também de um defumador. Novamente passos, agora descendo as escadas, sapatos de salto alto, outros não, a porta que é batida lá embaixo. Tudo tão gratuito, retalhos, como o piscar das luzes, o par bailando, sempre, no letreiro luminoso, mais uma noite.
Sente-se o cheiro dos corpos, também de um defumador. Novamente passos, agora descendo as escadas, sapatos de salto alto, outros não, a porta que é batida lá embaixo. Tudo tão gratuito, retalhos, como o piscar das luzes, o par bailando, sempre, no letreiro luminoso, mais uma noite.
Haverá também música, vinda do Acadêmico,
Dancing. A orquestra é boa, de velhos músicos, em sua maioria negros, velhos
negros. Destacam-se os instrumentos de sopro."
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