sábado, 26 de outubro de 2013
POESIA
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE
ITABIRA-MG =
1902-1987
Poema Patético
Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
e o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.
É a torneira pingando água,
e o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
POESIA
BASTOS TIGRE
RECIFE-PE = 1882-1957
Assusta-me este Deus de barba imensa,
Pai severo e tirano à moda antiga,
Que com o fogo do inferno os maus castiga
Porém, na terra, os bons não recompensa.
Pai severo e tirano à moda antiga,
Que com o fogo do inferno os maus castiga
Porém, na terra, os bons não recompensa.
Este Deus que a adorá-lo nos obriga,
Mas que só ama a quem o adula e incensa
Nunca há de ser o Deus da minha crença
Que eu venere e entre cânticos bendiga.
Mas que só ama a quem o adula e incensa
Nunca há de ser o Deus da minha crença
Que eu venere e entre cânticos bendiga.
O Jeová que no Antigo Testamento
Os profetas nos pintam, truculento,
É um velho Deus, motivo de pavor.
Os profetas nos pintam, truculento,
É um velho Deus, motivo de pavor.
Moço é o meu Deus, de eterna juventude:
Perdoa. Todo o mal muda em virtude.
De tão humano, é quase um pecador.
Perdoa. Todo o mal muda em virtude.
De tão humano, é quase um pecador.
CONTO
NELSON RODRIGUES
RECIFE-PE = 1912-1880
Cansada De Ser Fria
Quando o irmão apareceu na porta do escritório, perguntou:
— Qual é o drama?
E Gervásio, arriando na cadeira:
— Preciso muito falar contigo.
Apanha um cigarro.
— Fala!
Então, já com os olhos cheios de lágrimas, o outro pede:
— “Primeiro, fecha a porta”. Felipe sente que o irmão está
arrasado.
Surpreso, levanta-se e passa a chave na porta. Volta-se e
pergunta:
— Mas o que é que há?
Gervásio tem um soluço imenso:
— Sou traído! Adélia me trai! Tem um amante!
Estupefato, Felipe balbucia:
— Não é possível! Não pode ser!
Repete:
— Me trai, sim! — E batia no peito: — Sou traído!
— Não acredito, só vendo!
ADÉLIA
A princípio, Felipe pensou num caso de ciúmes doentios. Mas
o outro o desiludiu. Mandara seguir a mulher por um detetive particular. E
agora sabia de tudo — nome, endereço, dias de encontros, horários. Na véspera,
metera-se com o detetive num táxi e lá foram os dois, para a esquina do
apartamento do pecado. Viram quando Adélia saltara de outro táxi e entrara no
edifício. Gervásio podia ter uma atitude qualquer, de marido, de homem. Mas
desde a véspera que se limitava a chorar. Gemia para o irmão: — “Sou um pulha,
um tarado! Não fiz, nem vou fazer nada”. E súbito, no seu desespero, crispa a
mão no braço do irmão:
— Agora compreendo tua situação. Imagino o que não sofre!
Felipe volta-se, espantado:
— Minha situação? — Sem entender, continua: — Mas que situação?
Gervásio passa as costas da mão nos olhos. Arqueja: — “Nós
também somos irmãos em desgraça. Eu sou traído por um lado: tu és traído por
outro!”.
Há uma pausa. Felipe instiga:
— Sou traído e…
— Pois é: — és traído e sabes, como eu.
Por um momento, Felipe não sabe o que pensar ou o que
dizer. E, súbito, sem que o Gervásio possa prever-lhe o gesto, agarra-o pela
gola do paletó e o sacode:
— Você vai me contar tudo, tudinho, seu cachorro! Quem lhe
disse que eu sou traído e que sabia? Fala ou te arrebento.
Desconcertado, Gervásio debate-se:
— Mas que é isso? Não faça isso! Calma!
Felipe trincou os dentes:
— Quero a verdade, toda a verdade!
REVELAÇÃO
Sacudido por Felipe, que o ameaçava de quebrar a cara e até
de lhe dar um tiro na boca, Gervásio confundiu-se todo:
— Eu pensei que você soubesse. Todos pensam que você sabe e
perdoa!
Felipe interrompeu: — “Não quero comentários. Quero
informações. Anda!”. Então, esquecido da própria tragédia, lá foi o Gervásio
falando. O outro corta outra vez:
— Quero o nome do amante!
O irmão vacila, mas acaba tomando coragem:
— São vários!
Recua, desgovernado: — “Vários?”. E insiste: — “Mais de
um?”.
Gervásio confirma. Então, diz, com um meio riso hediondo:
— Tens mais sorte do que eu. A tua só tem um! Mas continua!
Gervásio contou-lhe o resto. Parentes, amigos, simples conhecidos sabiam de
tudo. E ela não discriminava, não escolhia, como se o seu destino fosse trair,
apenas trair. Felipe apertava a cabeça entre as mãos.
Faz uma pergunta, que é um lamento: — “Por quê, meu Deus,
por quê?”.
Vira-se, com o rosto devastado:
— Quer dizer que todo o Rio de Janeiro sabia, menos eu?
Gervásio levanta-se. Felipe o acompanha até a porta. Bate-lhe nas costas, com
um humor ignóbil:
— Parabéns, porque a tua só tem um e a minha vários!
O CHOQUE
Durante uma hora, uma hora e pouco, ele ficou só no
gabinete, entregue a uma meditação ardente e vazia. Quando apareceu uma
funcionária com uns papéis, explodiu: — “Vai-te para o diabo que te carregue!”.
A moça fugiu apavorada. Por fim, ele levantou-se, pôs o paletó e apanhou o
revólver na gaveta. Meia hora depois, chega em casa.
Entra e, impassível, faz um sinal para a mulher:
— Vamos bater um papinho lá dentro.
Tranca-se à chave com a esposa. Ela pergunta: — “Alguma
novidade?”. Rápido ele puxa o revólver. A esposa recua: — “Que é isso?”. Foi
sumário:
— Soube isso assim, assim. É verdade? Responda.
Ergue o rosto:
— É verdade.
Há uma pausa. Ele, quase chorando, pergunta: — “Já que
confessa, quero que me responda: — você merece a morte?”. Ela teve uma breve
vacilação. Acabou respondendo, com uma firmeza não isenta de doçura:
— Mereço. Eu mereço a morte.
E ele:
— Escuta: — eu devia te matar como a uma cachorra. Mas há,
nisso tudo, um mistério. Eu te perdoarei a vida se me disseres a verdade. Por
que me traíste? Fala!
— Por quê?
O marido continua:
— Eu sempre te conheci fria, de gelo, de pedra, de morte. Já
no namoro, tinhas horror de um simples beijo. No casamento, a mesma coisa.
Sempre me disseste que odeias a parte física do amor. Responde: — não me
disseste sempre?
Felipe está ofegante. Prossegue: — “A mulher fria é a única
que não tem o direito de trair. Por que me traíste, por quê?”.
Durante um momento, os dois se olharam apenas. Ela se
tornara para o marido a última das desconhecidas.
O marido insiste: — “Se me explicares, eu não te farei
nada, juro!”.
Então, sem desfitá-lo, a mulher fala:
— Eu te traí na esperança do amor de que todos falam.
Minhas amigas contavam maravilhas dos seus amores. Eu quis encontrar o meu.
— E daí? Encontraste?
Ela ficou calada. Finalmente respondeu:
— Nunca.
O DESFECHO
Sem uma palavra, ele abre a gaveta e guarda lá o revólver.
Levanta-se e sai. Imóvel e silenciosa, vê o marido abrir a porta, atravessar a
sala e sair. Então, sozinha, apanha um lápis e um papel e escreve, uma porção
de vezes: — “A mulher que não pode amar também não deve viver”. Horas depois,
tira da gaveta o revólver do marido. Já que ele não a matara, ela se matou —
cansada de ser fria.
F R A S E S
Eu sempre quis ter o corpo de um atleta, graças
ao Ronaldo, isso já é possível.
Liquidação de Muletas - venha correndo!...
O amor é como a gasolina da vida: custa caro, acaba
Liquidação de Muletas - venha correndo!...
O amor é como a gasolina da vida: custa caro, acaba
rápido e pode ser substituída pelo álcool.
Gostaria de saber o que esse Jeová fez de errado
Gostaria de saber o que esse Jeová fez de errado
pra ter tantas testemunhas assim...
Pobre é fogo, sempre diz que não tem nada,
Pobre é fogo, sempre diz que não tem nada,
mas quando chove, fala que perdeu tudo.
Cabelo ruim é igual a bandido... ou tá preso
ou tá armado.
Preguiçoso é o dono da sauna... que vive do
suor dos outros.
Sexo é o único esporte que não é cancelado
quando falta luz.
Sexo é hereditário. Se seus pais nunca
fizeram, você não fará.
POESIA
BANDEIRA TRIBUZI
SÃO
LUÍS-MA = 1927-1977
Louvação De São Luís
Ó minha cidade
Deixa-me viver
que eu quero aprender
tua poesia
sol e maresia
lendas e mistérios
luar das serestas
e o azul de teus dias
Deixa-me viver
que eu quero aprender
tua poesia
sol e maresia
lendas e mistérios
luar das serestas
e o azul de teus dias
Quero ouvir à
noite
tambores do Congo
gemendo e cantando
dores e saudades
A evocar martírios
lágrimas, açoites
que floriram claros
sóis da liberdade
tambores do Congo
gemendo e cantando
dores e saudades
A evocar martírios
lágrimas, açoites
que floriram claros
sóis da liberdade
Quero ler nas
ruas
fontes, cantarias
torres e mirantes
igrejas, sobrados
nas lentas ladeiras
que sobem angústias
sonhos do futuro
glórias do passado
fontes, cantarias
torres e mirantes
igrejas, sobrados
nas lentas ladeiras
que sobem angústias
sonhos do futuro
glórias do passado
CRÔNICA
R U B E M B R A G A
CACHOEIRO
DO ITAPEMIRIM-ES = 1913-1990
O Jovem Casal
abril, 1953
abril, 1953
Estavam esperando o bonde e fazia muito calor. Veio um
bonde, mas estava tão cheio, com tanta gente pendurada nos estribos que ela
apenas deu um passo à frente, ele apenas esboçou com o braço o gesto de quem
vai pegar um balaústre — mas desistiram.
Um homem com uma carrocinha de pão obrigou-os a recuar mais
para perto do meio-fio; depois o negrinho de uma lavanderia passou com a
bicicleta tão junto que um vestido esvoaçante bateu na cara do rapaz.
Ela se queixou de dor de cabeça; ele sentia uma dor de
dente não muito forte, mas enjoada e insistente, mas preferiu não dizer nada.
Ano e meio casados, tanta aventura sonhada, e estavam tão mal naquele quarto de
pensão do Catete, muito barulhento: "Lutaremos contra tudo" — havia
dito — e ele pensou com amargor que estavam lutando apenas contra as baratas,
as horríveis baratas do velho sobradão. Ela apenas com um gesto de susto e nojo
se encolhia a um canto ou saía para o corredor — ele, com repugnância, ia matar
o bicho; depois, com mais desgosto ainda, jogá-lo fora.
E havia as pulgas; havia a falta de água, e quando havia
água, a fila dos hóspedes no corredor, diante da porta do chuveiro. Havia as
instalações que sempre cheiravam mal, o papel da parede amarelado e feio, as
duas velhas gordas, pintadas, da mesinha ao lado, que lhe tiravam o apetite
para a mesquinha comida da pensão. Toda a tristeza, toda a mediocridade, toda a
feiúra duma vida estreita onde o mau-gosto atroz e pretensioso da classe média
se juntava à minuciosa ganância comercial — um ovo era
"extraordinário", quando eles pediam dois ovos a dona da pensão
olhava com raiva, estavam atrasados dias no pagamento.
Passou um ônibus enorme, parou logo adiante abrindo com
ruído a porta, num grande suspiro de ar comprimido, e ela nem sequer olhou o
ônibus, era tão mais caro. Ele teve um ímpeto, segurou-a pelo braço disposto a
fazer uma pequena loucura financeira — "vamos pegar o ônibus!". Mas o
monstro se fechara e partira jogando-lhes na cara um jato de fumaça ruim.
Ele então chegou mais para perto dela — lá vinha outro
bonde, não, mas aquele não servia — enlaçou-a pela cintura, depois ficou
segurando seu ombro com um gesto de ternura protetora, disse-lhe vagas
meiguices, ela apenas ficou quieta. "Está doendo muito a cabeça?" Ela
disse que não. "Seu cabelo agora está mais bonito, meio queimado de
sol." Ela sorriu levemente, mas de repente: "ih, me esqueci da
receita do médico", pediu-lhe a chave do quarto, ele disse que iria
apanhar para ela, ela disse que não, ela iria; quando voltou, foi exatamente a
tempo de perder um bonde quase vazio; os dois ficaram ali desanimados.
Então um grande carro conversível se deteve um instante
perto dos dois, diante do sinal fechado. Lá dentro havia um casal, um sujeito
meio calvo de ar importante na direção, uma mulherzinha muito pintada ao lado,
sentiram o cheiro de seu perfume caro. A mulherzinha deu-lhes um vago olhar,
examinou um pouco mais detidamente a moça, correndo os olhos da cabeça até os
sapatos pobres — enquanto o senhor meio calvo dizia alguma coisa sobre anéis, e
no momento do carro partir com um arranco macio e poderoso ouviram que a
mulherzinha dizia: "se ele deixar aquele por quinze contos, eu fico."
Quinze contos — isso entrou dolorosamente pelos ouvidos do
rapaz, parece que foi bater, como um soco, em seu estômago mal alimentado —
quinze contos, meses e meses de pensão! Então olhou a mulher e achou-a tão
linda e triste com sua blusinha branca, tão frágil, tão jovem e tão querida,
que sentiu os olhos arderem de vontade de chorar de humilhação por ser tão
pobre; disse: "Viu aquela vaca dizendo que vai comprar um anel de quinze
contos?"
Vinha o bonde.
SENTENÇA JUDICIAL
SENTENÇA JUDICIAL DATADA DE 1833 - PROVÍNCIA DE
SERGIPE
Veja como era a Lei "nos antigamente"
aqui no Brasil
SENTENÇA JUDICIAL EM 1833
"Ipsis litteris, ipsis verbis" - TRATA-SE
DE LINGUA PORTUGUESA ARCAICA
PROVÍNCIA DE SERGIPE
O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.
CONSIDERO:
QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ela e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana;
QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;
QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.
CONDENO:
O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.
Nomeio carrasco o carcereiro.
Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.
Manoel Fernandes dos Santos
Juiz
de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe, 15 de Outubro de1833.
Fonte: Instituto Histórico de Alagoas
POESIA
ASCENSO FERREIRA
PALMARES-PE = 1895-1965
Arco-Íris
-Como é bonito!
Como é bonito!
Cheio de cores...
cheio de cores...
-Viva o
Arco-Íris! – ecoa um grito.
-Oh! Como é belo!
Tem sete cores...
-Está bebendo
água no riacho!
-Vamos
cercá-lo... vamos cercá-lo
-Vamos passar
nele por baixo!
-Vamos
passá-lo... vamos passá-lo...
-Fugiu do
riacho... Subiu o monte...
-Vamos pegá-lo...
vamos pegá-lo...
O monte é no
alto... Só o horizonte
vazio resta...
Onde encontrá-lo?
Fugiu...
A chuva fina tem
carícias de morte...
Fugiu...
Para o Sul? Para
o Norte?
-Quem sabe?
Desapareceu...
Além...
Vida – Arco-íris
também...
CRÔNICA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO
ALEGRE-RS = 1936
Alternativa
Envelhecer
é chato, mas consolemo-nos: a alternativa é pior. Ninguém que eu conheça morreu
e voltou para contar como é estar morto, mas o consenso geral é que existir é
muito melhor do que não existir. Há dúvidas, claro. Muitos acreditam que com a
morte se vai desta vida para outra melhor, inclusive mais barata, além de
eterna. Só descobriremos quando chegarmos lá. Enquanto isto vamos envelhecendo
com a dignidade possível, sem nenhuma vontade de experimentar a alternativa.
Mas há
casos em que a alternativa para as coisas como estão é conhecida. Já passamos
pela alternativa e sabemos muito bem como ela é. Por exemplo: a alternativa de
um país sem políticos, ou com políticos cerceados por um poder mais alto e
armado. Tivemos vinte anos desta alternativa e quem tem saudade dela precisa
ser constantemente lembrado de como foi. Não havia corrupção? Havia, sim, não
havia era investigação para valer. Havia prepotência, havia censura à imprensa,
havia a Presidência passando de general para general sem consulta popular,
repressão criminosa à divergência, uma política econômica subserviente e um
“milagre” econômico enganador. Quem viveu naquele tempo lembra que as ordens do
dia nos quartéis eram lidas e divulgadas como éditos papais para orientar os
fiéis sobre o “pensamento militar”, que decidia nossas vidas.
Ao
contrario da morte, de uma ditadura se volta, preferencialmente com uma lição
aprendida. E, se para garantir que a alternativa não se repita, é preciso
cuidar para não desmoralizar demais a política e os políticos, que seja. Melhor
uma democracia imperfeita do que uma ordem falsa, mas incontestável. Da próxima
vez que desesperar dos nossos políticos, portanto, e que alguma notícia de
Brasília lhe enojar, ou você concluir que o país estaria melhor sem esses
dirigentes e representantes que só representam seus interesses, e seus bolsos,
respire fundo e pense na alternativa.
Sequer
pensar que a alternativa seria preferível — como tem gente pensando — equivale
a um suicídio cívico. Para mudar isso aí, prefira a vida — e o voto.
PIADA
Três
Coisinhas
Na farmácia lotada daquela pacata cidadezinha do interior,
aparece uma menina de seis anos e grita:
— Duas dúzias de preservativos de todos os tamanhos!
A atendente corre até a menina, se ajoelha e lhe fala ao
ouvido:
— Eu vou lhe falar três coisinhas: primeiro, não se deve
gritar desse jeito; segundo, preservativos não são para criancinhas pequenas
como você e, terceiro, fala para seu pai dar uma passadinha aqui.
— Eu também vou falar três coisinhas — responde a menina.
— Primeiro, na escola me ensinaram que devo falar alto e
claro; segundo, eu já sei que preservativos não são para criancinhas, são
contra criancinhas e, terceiro, meu pai não tem nada a ver, os preservativos
são para minha mãe que vai ficar três semanas no Rio, visitando minha tia!
POESIA
ÂNGELO MONTEIRO
PENEDO-AL = 1942
O Recife Oculto
Há o Recife que viveu em mim
E não o que eu vivi.
Há o Recife que acendeu minhas perplexidades
Quando ao passar abstraído em suas pontes
Atrás de mim deixei correndo as águas
Ao seu destino numero e só.
Há o Recife enflorado de presenças
Sem história. E há outro anfíbio e oculto
Plasmado pelas ânsias de uma fé intensa
À redondez das coisas óbvias.
Uma cidade é mais que uma cidade
Para todo o que foge às superfícies
E, atrás de encontros mais irmãos
Que a silhueta fria dos seus edifícios,
Busca descer às paragens mais secretas
Onde lateja o sangue das correntezas
E a alma viscosa dos seus pobres mangues
Ao seu cruzamento de ontens e amanhãs.
Por isso, para mim,
Que celebrei a falácia das auroras
E desprezei a dor velada dos crepúsculos
Fala mais alto o recife que eu não vi.
Aquele que está sempre de passagem
Como a rua passeada há muitos anos
Ou o reflexo distante da paisagem
Dos meus enganos e meus desenganos.
O Recife suspenso sobre as águas
Em memória dos sonhos desfolhados
Na lápide dos dias.
CONTO
ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS –MA = 1855 1908
O Viúvo
Na véspera de partir para a
Europa, o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de que ia ser
testemunha, foi despedir-se do seu velho camarada Tertuliano.
Ao aproximar-se da casa, ouviu
berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que dominava de vez em
quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e angustioso, esta palavra:
"Xandoca".
O doutor Claudino apressou o
passo, e entrou muito aflito em casa do amigo.
Havia, efetivamente, motivo para toda aquela manifestação
de desespero. Tertuliano acabava de enviuvar. Havia meia hora que dona Xandoca,
vítima de uma febre puerperal, fechara os olhos para nunca mais abri-los.
O corpo, vestido de seda preta,
as mãos cruzadas sobre o peito, estava colocado num canapé, na sala de visitas.
À cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de rendas, duas
velas de cera substituíam, aos dous lados de um crucifixo, o bom e o mau
ladrão.
Tertuliano, abraçado ao cadáver,
soluçava convulsamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha
elétrica. Os filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos,
rodeavam-no aos gritos.
Na sala havia um contínuo fluxo e
refluxo de gente que entrava e saía, pessoas da vizinhança, chorando muito, e
indivíduos que, passando na rua, ouviam gritar e entravam por mera curiosidade.
O doutor Claudino estava
impressionadíssimo. Caíra de supetão no meio daquele espetáculo comovedor, e
contemplava atônito o cadáver da pobre senhora que, havia quatro dias,
encontrara na rua da Carioca, muito alegre, levando um filho pela mão e outro
no ventre, arrastando vaidosa a sua maternidade feliz.
Tertuliano, mal que o viu,
atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe de lágrimas a gola do casaco; o doutor
Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados pelo
pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que não
era da família.
- Isto foi uma surpresa... uma
dolorosa surpresa para mim - conseguiu dizer com a voz embargada pela comoção.
- Parto amanhã para a Europa, no Níger... vinha despedir-me de ti... e dela...
de dona Xandoca e... vejo que... que... que...
E o doutor Claudino fez uma
careta medonha para não soluçar.
- Dispõe de mim, meu velho; estou
às tuas ordens, bem sabes.
- Obrigado - disse Tertuliano
numa dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos - o Rodrigo,
aquele meu primo empregado no foro, já foi tratar do enterro, que é amanhã às
dez horas.
Fazendo grandes esforços para
reprimir a explosão das lágrimas, o viúvo contou ao doutor Claudino todos os
incidentes da rápida moléstia e da morte de dona Xandoca.
- Uma coisa inexplicável! Nunca a
pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não esperou cinco
minutos:.. Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no sótão... hás de
vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando, aumentando... até
vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico chegou, já ela
agoniza... a... va!...
E Tertuliano, prorrompendo em
soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.
No dia seguinte, a cena foi
dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os filhos
beijassem o cadáver, medonhamente intumescido e decomposto. Ninguém reconhecia
dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe de carne
pútrida.
Fecharam o caixão, mas Tertuliano
agarrou-se a ele e não o queria deixar sair, gritando: - Não consinto! não
quero que a levem, daqui! - Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para
longe. Ele caiu e começou a escabujar no chão, soltando grandes gritos
nervosos. Três senhoras caíram também com espectaculosos ataques. As crianças
berravam. Choravam todos.
De volta do enterro, o doutor
Claudino, conquanto muito atarefado com a viagem, não quis deixar de fazer uma
última visita a Tertuliano.
Encontrou-o num estado lastimoso, sentado numa cadeira da
sala de jantar, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no
mísero recém-nascido, que a um canto da casa mamava sofregamente numa preta
gorda.
- Tertuliano, adeus. Daqui a meia
hora devo estar embarcando. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te
companhia... Adeus!
O viúvo lançou-lhe um olhar vago,
um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
- Adeus!
Às sete horas da noite o doutor
Claudino, sentado na coberta do Níger, contemplando as ondas, esplendidamente
iluminadas pelo luar, pensava naquela olhar vago de Tertuliano, naquele adeus
terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada não houvesse enlouquecido.
Meses depois, a exposição de
Paris atordoava-o; mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das Máquinas, no
Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a lembrança
daquela cena desoladora do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e repercutia-lhe
dentro d'alma o som daquele adeus pungente e indefinível.
Interessava-se muito por
Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz! viveria
ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?
Depois de um ano e quatro meses
de ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e a sua primeira visita foi
para Tertuliano, que morava ainda na mesma casa.
Mandaram-no entrar para a sala de
jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo de si, rodeado pelos
filhos, o olhar fixo no mais pequenito, que estava muito esperto, brincando no
colo da preta gorda.
- Tertuliano? - balbuciou o
doutor Claudino.
O viúvo lançou-lhe um olhar vago,
um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
- Adeus.
Depois, dir-se-ia que se fizera
subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um salto,
gritando:
- Claudino! - e atirou-se nos
braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas: - Ah! meu amigo! perdi
minha mulher!...
- Sim, eu sei, mas já tinhas
tempo de estar mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze
meses!...
- Como quatorze meses? seis
dias...
- Ora essa! pois não se lembras
que acompanhei o enterro de dona Xandoca?
- Ah! tu falas da Xandoca... mas
há três meses casei-me com outra... a filha do major Seabra, e há seis dias
estou viu...ú...vo! E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou-se de novo
ao doutor Claudino.
sábado, 19 de outubro de 2013
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