MARCELINO FREIRE*
Totonha
Capim sabe
ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em
quê? Não quero aprender, dispenso. Deixa pra gente que é moço. Gente que tem
ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só
precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do
fogão é que fico. Tô bem.
Já viu
fogo ir atrás de sílaba? O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o
presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender
com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da
cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.
Tem coisa
mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira?
O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o
prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu
esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem
melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem? Morrer, já sei. Comer,
também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar
quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!
Será que
eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar
contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me
diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está
atrás do nome não conta? No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do
Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me
chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre
a mesma pessoa. Que voa.
Para mim,
a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho
medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem
sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende? Não
preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa
saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever. Ah,
não vou.
(In Contos Negreiros. Record,
2005)
*Marcelino
Freire nasceu em 20 de março de 1967 na cidade de Sertânia, Sertão de
Pernambuco. Vive em São Paulo desde 1991. É autor de EraOdito (Aforismos, 2ª
edição, 2002), Angu de Sangue (Contos, 2000) e BaléRalé (Contos, 2003), todos
publicados pela Ateliê Editorial. Em 2002, idealizou e editou a Coleção 5
Minutinhos, inaugurando com ela o selo eraOdito editOra. É um dos editores da
PS:SP, revista de prosa lançada em maio de 2003, e um dos contistas em destaque
nas antologias Geração 90 (2001) e Os Transgressores (2003), publicadas pela
Boitempo Editorial
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