ÉRICO VERÍSSIMO
CRUZ ALTA-RS =
1905-1975
Chico
Chamava-se
Chico. De quê? Ele mesmo não sabia...
-
Gente pobre não tem nome... - costumava dizer.
Tinha
sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava bordoada do irmão mais
velho, o Zico, que vivia embriagado.
A
mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão velho, paralítica,
cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos baços e sem
expressão, o mesmo quadro de miséria e desalento: as paredes sórdidas do
quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias de aranha, a
janela sem batentes, eternamente escancarada, mostrando uma nesga de céu em que
nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a claridade fugidia
de estrelas...
O
pai - Chico mal se lembrava disto - morrera por um dia triste de inverno, de
peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que ia fazendo
tóc-tóc-tóc-tóc..., aos solavancos, pela estrada barrenta e sinuosa que ia dar
no cemitério.
Chico
ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um Deus muito bom e muito
severo que não queria que as crianças dissessem nomes feios nem desobedecessem
aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que punha empenho em que todas as
cousas na terra andassem direitas e bem feitas.
Surgia,
então, na cabecinha do garoto um problema intrincado e insolúvel.
Chico
via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico, morava) gente feliz, rica,
alegre; crianças que andavam bem vestidas, que tinham brinquedos surpreendentes
e que comiam os doces mais saborosos desta vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro
lado, os infelizes, os desprotegidos da fortuna, os que rolam pão duro e
andavam a ferir os pés descalços no pedregulho das ruas. E o pequeno não podia
compreender a razão de tanta desigualdade de sorte no mundo. Como era que Deus,
tão bom e tão justo, consentia em que existissem crianças felizes e protegidas,
ao mesmo passo que existiam outras, desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns
tostões, - magríssimos tostões -, tinham de andar vendendo jornais pelas ruas,
à luz adustiva do sol?...
E
Chico não compreendia... Não compreendia e ficava pensando, pensando...
Mas
não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que adivinhava inúteis. A
vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e lucubrações não
ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.
-
O'ia o Correio da Manhã! O Correeeeio! E assim ia vivendo...
Érico Veríssimo, Fantoches,
Editora Globo
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