ANTÔNIO PRATA
SÃO PAULO-SP = 1977
Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso
freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais,
meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e
cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de
cento e cinqüenta anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o
proletariado atende por Betão – é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas
costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar
“amigos” do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não
chegam para falarmos de literatura.
– Ô Betão, traz mais uma pra a gente – eu digo, com os
cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda
que é o Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer
parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm
mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem
frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos
tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de
esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais
de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e
tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do
Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é
qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de
lata, copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima
imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando
um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que
nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos:
ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos
que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando
cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e
universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como
ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a
gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem
meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e,
principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu
gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais,
meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados
que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos
dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia
antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós
gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em
coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta
os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a
gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a
Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem
em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem
percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do
cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de
bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles
sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e
nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não
entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de
fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando
reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já
disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de
esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do
jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha
sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e
a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio
intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem
frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que
mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de
esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e
preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).
– Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais
que tem?
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