HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA
= 1886 / 1934
A EPILÉTICA
- Estás, então, separado de tua esposa?
- É verdade; internei-a em uma casa de saúde.
E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que há muito
se não viam, o mais moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante
de uma conceituada casa da praça, justificou a sua conduta:
- A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um
perverso, um miserável, um desumano, se conservasse na minha companhia uma
senhora sabidamente enferma, perseguida por moléstia tão delicada.
- Era, então, doente?
- Doentíssima! - confirmou o esposo inconsolável.
E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um
desejo de conhecer, fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração,
tomou-o pelo braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim,
principiou, calmo, a descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de
fumaça, as duas xícaras de café.
- Há muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha.
Afastado sempre de casa por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em
excursão pelo interior de Minas, ora por S. Paulo, era com estranheza, com
mágoa íntima, que eu observava, de mês para mês, a mudança nos modos de minha
mulher. A transformação do seu caráter, das suas maneiras, do modo, enfim, por
que definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na suspeita
de que alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em
uma dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um
parente meu, fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela
sofria de ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e,
chamando-me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a limpo
essa dúvida, empregando, no caso, a experiência da tigela de leite.
- Da tigela de leite? - interrompeu o amigo.
- Da tigela de leite, sim.
E continuando:
- Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma
tigela de leite, e põe-se debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio
do colchão. Em seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois
palmos, e amarra-se no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre
a tigela, de modo que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o
leite, mas de maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de
epilepsia, a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela,
registrando o fenômeno.
- E fizeste a experiência?
- Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se
achava ausente, e fiz o que me haviam aconselhado com a diferença, apenas, da
colher, que, por ser a cama um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um
batedor de doce, que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia
a São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.
- E então? - indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.
- O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...
- Que é que tem? - interrompeu o outro.
E o desgraçado, enxugando os olhos: - Estava cheia... de manteiga!...
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