BELO HORIZONTE-MG
= 1923-2004
O Enviado De Deus
FAZIA um dia
lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fusca deslizava
dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera
a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com
otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora
marcada no dentista.
Mas eis que o
sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se aproxima de
meu carro.
— Moço, me dá
uma carona até a cidade?
O que mais me
impressionou foi a espontaneidade com que respondi:
— Eu não vou até
a cidade, meu filho.
Havia no meu tom
algo de paternal e compassivo, mas que suficiência na minha voz! Que segurança
no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se abria, o carro
arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.
Logo uma voz que
não era a minha saltou dentro de mim:
— Por que você
mentiu?
Tentei vagamente
justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto…
— Assalto? A
esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja ridículo.
Protestei contra
a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E nem bem entrara
no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele não podia tomar
um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido.
Mas a voz
insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de mim,
também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem ao menos
dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobre diabo.
Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não
dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.
E eu no meu
carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo. Comecei a
aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel a
voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus:
— Não custava
nada levá-lo.
Não, Deus não
podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma simples
carona?
Ah, sim? Pois
então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o Grande Teste da
minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me esperar numa esquina
da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de
Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu destino.
Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova definitiva.
Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar — Deus é
muito disfarçado.
Agora o terno
novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as
profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo
abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.
— Não tem
dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido, acelerando mais
o carro a caminho da cidade.
Quando dei por
mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber por quê,
de volta em direção ao túnel.
Imediatamente me
revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o dentista — o que,
aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a
refazer todo o percurso.
Como
explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para
buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.
Estava. Foi só
fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando condução.
Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejei uma desculpa
qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia:
sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado
para buscá-lo.
Era mesmo alguém
que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiro para o ônibus.
Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — o que já é
outra história.
Só não me
pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima,
Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.
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