ADRIANA FALCÃO
RTIO DE JANEIRO-RJ = 1960
O Doido Da Garrafa
Ele não era mais doido do que as outras pessoas do
mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido.
Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.
Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.
O Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como
ninguém, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos.
Batizava cada barco com um nome de mulher e, enquanto estava trabalhando nele,
morria de amores pela dona imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por
uma, todas elas, com exceção de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias
para ser construída.
Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso,
músicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais
variados gêneros. Uai aí aquela da mulher de blusa verde atravessando a rua
apressada, e o Doido da Garrafa imediatamente compunha um samba, uma valsa, um
rock, um rap, um blues, dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando,
da rua e do apressada. Geralmente ficava uma obra-prima.
Gostava muito de observar as pessoas na rua, do
cheiro de café, de cantar e de ouvir música. Não gostava muito do fato de ter
pernas, mas acabou se acostumando com elas. De cabelo ele gostava. Em
compensação, tinha verdadeiro horror a multidão, bermudão, tubarão, ladrão,
camburão, bajulação, afetação, dança de salão, falta de educação e à palavra
bife.
Escrevia cartas para ninguém, umas em prosa, outras
em poesia, como mero exercício de estilo.
Tinha mania de dar entrevistas para o vento e já
sabia a resposta de qualquer pergunta que porventura alguém pudesse lhe fazer
um dia.
Ajudava o dicionário a explicar as coisas inventando palavras
necessárias, como dorinfinita.
Adorava álgebra, mas tinha particular antipatia por
trigonometria, pois não encontrava nenhum motivo para se pegar pedaços de
triângulos e fazer contas tão difíceis com eles.
Conhecia mitologia a fundo.
Tinha angústia matinal, uma depressão no meio da
tarde que ele chamava de cinco horas, porque era a hora que ela aparecia, e uma
insônia crônica a quem chamava carinhosamente de Proserpina.
Sentia uma paixão azul dentro do peito, desde
criança, sempre que olhava o mar e orgulhava-se muito disso.
Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase.
Às vezes falava sozinho, Preferia tristeza à agonia.
Todas as noites, entre oito e dez e meia, era visto
andando de um lado para o outro da rua, método que tinha inventado para acabar
de vez com a preocupação de fazer a volta de repente, quando achava que já
tinha andado o suficiente. (Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha
para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabeça incessantemente a
palavra ecumênico sem ter a menor idéia da razão pela qual fazia isso.
Durante o dia o Doido da Garrafa trabalhava numa
multinacional, era sujeito bem visto, supervisor de departamento, ganhava um
bom salário e gratificações que entregava para a mulher aplicar em fundos de
investimento.
No fim do ano ia trocar de carro.
Era excelente chefe de família.
Não era mais doido do que as outras pessoas do mundo,
mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, lá vai o Doido
da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias garrafas um pouquinho.
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