CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG =
1902-1987
Antigamente
Havia os que tomaram chá em criança, e, ao
visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira.
Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: "Farei
presente." Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu,
exclamando: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo"; ao que o
Reverendíssimo correspondia: "Para sempre seja louvado." E os
eruditos, se alguém espirrava - sinal de defluxo -, eram impelidos a exortar:
"Dominus tecum." Embora sem saber da missa a metade, os
presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em
cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de
melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo,
insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram
mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas,
não: verdadeiros cromos, umas tetéias.
Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam
a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim
por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as
botas. Uns raros amarravam cachorro com linguinça. E alguns ouviam cantar o
galo, mas não sabiam onde. As familias faziam sortimento na venda, tinham conta
no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o
moleque do tabuleiro, quase sempre um "cabrito", não tivesse catinga.
Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca,
trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar
dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe.
As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho
faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssimos
tratantes.
Acontecia o individuo apanhar constipação; ficando
perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar
a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era phtysica, feia
era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos
lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e
capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não
havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.
Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
II
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante
dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes de cair nos braços de Morfeu,
era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem
tugir nem mugir. Nada de haver na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais
velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo
voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo
que não entendesse patavina para comparecer todo liró ao copo d'água, se bem
que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram
um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e
caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de
topete; depois de fintar e emgabelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em
pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: quem
somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada,
muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o
mão-de-defunto.
Bom era ter costas quentes, dar as cartas com a
faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de perlimpimpim,
pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes
que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga
ao nariz, ou se faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no
dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a
mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia um doutor
pomada, todo cheio de nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era um
doutor de mula ruça, um pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a
nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria
lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméia, um alcaide
que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.
Em compensação, viver não era sangria desatada, e
até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco,
ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que
vida supimpa a do degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos
que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que
comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-batata, o
Dr. Fiado que morreu ontem, o zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o
salta-pocinhas, os alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o
safardana, o maria-vai-com-as-outras... Depois de mil peripécias, assim ou
assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou simplesmente a
bota, sem saber como descalçá-la.
Mas até aí morreu o Neves, e não foi no Dia de São
Nunca de tarde: foi vitima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os
recursos da ciência, e acreditam que a familia nem sequer botou fumo no chapéu?
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