segunda-feira, 11 de setembro de 2017
POESIA = Ângelo Monteiro
A Gaivota Morta
Não
morrerás jamais minha gaivota
suprema ave do mar, pobre princesa
estás na alma do poeta presa
enquanto a alma do poeta é morta
suprema ave do mar, pobre princesa
estás na alma do poeta presa
enquanto a alma do poeta é morta
Suprema
alma do poeta viva
suprema alma da gaivota morta
com a tua morte a vida fez-se altiva,
com a minha vida encontro a mesma porta.
suprema alma da gaivota morta
com a tua morte a vida fez-se altiva,
com a minha vida encontro a mesma porta.
Negra
ave do céu, cativa e eterna,
tu pairas sobre o mar depois de morta
eu pairo nesta vida que se inferna.
tu pairas sobre o mar depois de morta
eu pairo nesta vida que se inferna.
Negra
gaivota morta, vida minha.
Tuas asas perdi em em hora torta
na terra te ganhei como rainha
Tuas asas perdi em em hora torta
na terra te ganhei como rainha
ÂNGELO MONTEIRO
PENEDO-AL = 1942
POESIA = Gouveia Marinho
In Memoriam
Em límpido
dezembro e vento triste
de denso luto
o coração me cobre.
Tua sombra aos
meus olhos se descobre
no etéreo seio
azul, onde subistes...
Sábio e justo,
a existência consumiste
de sã doutrina
no serviço nobre.
E pela vida em
fora, humilde e pobre,
da verdade o
tesouro repartiste
Tu, que morre
à volta dos cem anos,
e que sofreste
agudos desenganos,
no momento em
que a vida se te encerra,
sentes vibrar
nos órgãos auditivos,
mortos há
tanto, os ecos muito vivos
do teu
apostolado aqui na terra.
GOUVEIA
MARINHO
LUIZ TAVARES DE
GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE = 1901
/ 1983
CONTO = Millôr Fernandes
A Mensagem
Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro
sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da
primeira enquanto se economiza o segundo:
E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para
anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”.
Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria
referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em
50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente,
numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse
o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o
pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não
poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o
pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante?
Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura
nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar
nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato
de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de
galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil
cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o
freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta
casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou
o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o
freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que
o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para
expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao
“Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa
psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a
de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de
que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o
“frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado
com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe
aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court,
ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos,
pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de
começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado:
Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?
RIO DE JANEIRO-rj = 1923-2012
POESIA = Odilon Nestor
A Seca
Todo
esse campo agora abandonado
queimou
do sol a pólvora candente!
Já
de verde não tinge a grama olente,
secaram
fontes, e morreu o gado!
O
céu não chora o orvalho suspirado;
nem
sombra existe na planície ardente!
Ninhos
sem ave, habitações sem gente...
quanta
gente sem pão, por todo o lado!...
E
enquanto o vento cálido rugita,
e
na fúria cruel, ríspido, agita
o
esqueleto das árvores crestadas,
Faminto
e nu, em retirada informe,
vê-se
ir além descendo um povo enorme,
a
pedir e a morrer pelas estradas!...
ODILON NESTOR
TEIXEIRA-PB = 1874-1968
CONTO = Humberto de Campos
Solução
Curvado
sobre a mesa onde redigia penosamente um bilhete à amante, o bacharel Anastácio não ouvia as passadas da mulher,
que, no andar superior, se vestia para sair.
Estavam em divergência há dois dias. De vez em quando a discussão estalava, trocando-se palavras, que atingiam o alvo e
ricocheteavam com a mesma violência.
De
repente, um perfume doce, de Royal Begonia, espalha-se pelo gabinete. E
enquadrando-se na moldura da porta, abotoando nervosamente as luvas, a figura
mundana, acentuadamente chic, de Dona Vivi.
Não
é alta, nem baixa. Clara, olhos negros, boca rasgada, de dentes magníficos, é o
tipo comum da raça. Os braços finos e brancos, descem, nus, como duas hastes de
lírio, desde a confluência do corpo. Calça, no máximo, 34, e os sapatinhos,
bicando as flores vermelhas do tapete azul, são como dois beija-flores sugando
a mesma roseira.
De pijama, a cabeça curvada, Anastácio parece
mais uma trouxa sobre uma cadeira do que um animal vivo. Não se move. Se se
erguesse, toda a gente lhe veria a altura incomum, o nariz cumprido, o rosto
longo e estúpido, os defeitos, em suma, que ele, como as serpentes, disfarça
quando se enrodilha.
Fisionomia de indignação, as narinas batendo
como as asas de uma pequena borboleta, Dona Vivi estaca, a dois passos do
marido.
- Pronto; vou sair, - informa, sem
delicadeza.
- Boa viagem, - responde o rapaz, sem
voltar-se.
Dona Vivi morde, nervosa, o beiço vermelho.
- Preciso de duzentos mil réis, - adianta.
Um risinho canalha do marido dá-lhe um
tremor de indignação.
- Se você não me der - explode, - terei de
pedir a outro homem!
A essas palavras Anastácio volta-se, de
súbito, na cadeira. A tempestade vai, com certeza, estalar. Vivi encolhe-se,
como se já estivesse sentindo na cabeça, esmigalhando-lhe o chapéu, os punhos
de ferro do marido. Enroscaram-se os dois: ela apavorada, ele, indeciso.
- Queres saber de uma coisa, Etelvina? -
diz, ao fim de um instante.
E adoçando a voz:
- Arranja quatrocentos. Eu também
preciso de duzentos...
HUMBERTO DE
CAMPOS
MIRITIBA-MA =
1886-1934
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