segunda-feira, 29 de julho de 2013

POESIA

G E I R   C A M P O S
SÃO JOSÉ DO CALÇADO-ES,  1924-1999

Escalada


Sinto que te horroriza o tom vermelho
do sangue em minhas veias a pulsar,
e tudo fazes para o descorar
noutro que fora como o teu no espelho.

Já por te conhecer, o teu conselho
eu não aceito e entramos a lutar
por nonadas de tempo e de lugar,
quebrando magnitudes no joelho.

Sem força ou argumento que te acalme,
lanças teu ódio a mim feito napalm
a encher de cinza uma escalada vã:

imperturbado com teu desvario,
retempero ao teu fogo um sangue-frio
de guerrilheiro do Vietnã.



POESIA

EUCLIDES DA CUNHA
CANTAGALO-RJ  =  1866-1909

  
Página Vazia


Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse,
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”



CONTO

ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1855 / 1908

Pan-Americano


Na venda. Manuel, o vendeiro, está ao balcão. O Chico Facada acaba de beber dois de parati.

CHICO (limpando os beiços)
Ó seu Manuel?
MANUEL
Diga!
CHICO
Eu sou um cabra vigiado: já fui até ao Acre mas sou inguinorante. Você, que é todo metido a sebo, me explique o que vem a ser isso de pan-americano.
MANUEL
Sei lá! Pois se a coisa é americana, como quer você que eu saiba? Tenho os meus estudos, isso tenho, mas só entendo do que é nosso. Lá o americano sei o que é; o pan é que me dá volta ao miolo!
CHICO
Você tem aquele livro que ensina tudo, e que o copeiro do doutor Furtado lhe vendeu para papel de embrulho?
MANUEL
Ah! Tenho! Tenho! Lembra você multo bem! E é justamente o volume que tem a letra p. (vai buscar numa prateleira o segundo volume do dicionário de Eduardo Faria) Ora, vamos ver! Isto é um livro, "seu" Chico, comprado a peso, aqui no balcão, por uma bagatela, mas que não dou por dinheiro nenhum. É obra rara! (depois de folhear o dicionário) Cá está! (lendo) "Pan: deus grego..."
CHICO (interrompendo)
Grego ou americano?
MANUEL
Aqui diz grego. Talvez seja erro de imprensa. (continuando a leitura) "Filho de Júpiter e de Calisto."
CHICO
Que diabo! Então ele tem dois pais?
MANUEL
Naturalmente Júpiter é a mãe. O nome é de mulher. (lendo) "Presidia ao rebanho e aos pastos, e passava pelo inventor da charamela."
CHICO
Charamela? Que vem a ser isso?
MANUEL
Lá na terra chamamos nós charamela a uma espécie de flauta.
CHICO
De flauta? Então já sei! Isso de pan-americano é uma flauteação!
MANUEL (fechando o dicionário)
Diz você muito bem, "seu" Chico: são uns flauteadores! Ora, que temos nós com os pastos e os rebanhos? (vai guardar o dicionário) Coisas que eles inventam para gastar dinheiro, como se o dinheiro andasse a rodo! (em tom confidencial) Olhe, aqui para nós, que ninguém nos ouve, o filho de Calisto deve ser o tal Rute, que andou por aí a fazer discursos e a encher o pandulho...
CHICO
Por falar em calistos, venha mais um de parati, "seu" Manuel!


sábado, 13 de julho de 2013

VÍDEO = Meu Sublime Torrão


JOÃO PESSOA-PB = B R A S I L


















CRÔNICA


JOSÉ LINS DO REGO
PILAR-PB  =  1901-1957



O Rio


 
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:
- Vou dizer ao velho!
Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.
 



POESIA IMAGEM = Alberto da Cunha Melo


POESIA

CARLOS PENA FILHO
RECIFE-PE  =  1929-1960

Igrejas

 

Não é que somente em luas,
o Recife farto seja;
é farto, também de igrejas.
Tem a de São Francisco,
na rua do Imperador,
com rezas pra Santo Antônio
e promessas por amor;
tem a igreja de São Pedro,
no pátio do mesmo nome
que se fosse gente, há muito
tinha morrido de fome,
mas, como é, firme, resiste,
sozinha, em seu abandono
e em seu destino bem triste
de igreja quase sem dono.
E como se fosse pouco
seu exílio obrigatório,
ainda está condenada
a ver o bar de Gregório,
onde os nossos literatos,
criados a uva e maçãs,
levam os amigos de fora
pra comer sarapatel,
depois transformado em obra
com tinta escura e papel.
 

Mas não é só; o Recife
ainda tem muitas igrejas
lavando os pecados seus.
Tem lá perto do mar,
plantada em meio do mal,
a sua concatedral
chamada Madre de Deus,
que é onde essas menininhas
de Maria Madalena
vão à missa e à novena.

VÍDEO = Trilhas Sonoras


PIADA


Marido Pinguço



A mulher vai buscar o resultado de uns exames que o marido fez no hospital e a médica alerta:

- Seu marido está com cirrose, gastrite, tuberculose, pneumonia... A senhora não acha que ele está bebendo de mais?

- Ah, nem me fale, doutora! Aquele homem só pensa em beber, beber, beber! A vida dele é só bebida, passa dias com os amigos no bar - reclama.
- Mas isso tem solução! Sabia que meu ex-marido era igualzinho? - consola a médica.

- Não me diga...

- Digo sim! Ele tinha um teor altíssimo de álcool no sangue! Mas eu descobri que o maior problema dele era a falta de fósforo- conta a médica.
- Que interessante a senhora usou vitaminas para curá-lo?-- pergunta a mulher.
- Não! A única coisa que eu fiz foi riscar um fósforo perto dele!

PENSAMENTOS



CONTO


O S M A N   L I N S
VITÓRIA DE SANTO ANTÃO-PE  =  1924-1978

 
O Vitral

 

Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.
- Ora... Temos tantos... - respondera o homem. - Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer... (A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto).
- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?
Como se a idéia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. - No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. - Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.
Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou exultante que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. - Hoje eu queria ser menina.
- Você é.
A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente.
Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que sem ele o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
- Aproveite - aconselhou ele. - Isso passa.
- Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. - Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça” - pensava. – “Eu o vivi. Eu o estou vivendo".
Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
 

(“Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”)

 

POESIA


CLÓVIS CAMPÊLO
RECIFE-PE  =  1951


Auto Retrato


Sou a reta e sou a curva,
a mão esquerda e a direita,
o verão na praia do Pina
e a chuva que adoça o caju.

Sou a revolução que não houve,
as dúvidas da certeza
e a alegria das dúvidas.

Sou o pai e sou o filho,
o vento que anuncia tempestades,
o raio que corta o céu ao meio
no meio da tarde.

Sou martelo agalopado,
entidade de corpo fechado,
soneto na nova medida
e a bandeira de São João.

Sou Elefante e Pitombeiras,
sou o Galo da Madrugada,
sou o barulho da feira
e o som da procissão.

Sou o amarelo de Nossa Senhora
e o azul de Iemanjá,
sou calmaria sem vento,
sou selva de pedra e cimento,
relva plantada no chão.

Sou o tudo e sou o nada,
o silêncio e a batucada;
sou o sul e sou o norte,
faca cega e navalha de corte.

Eu sou o fogo da vida
e sou o sopro da morte!

 

GRANDES PINTORES

 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976 
 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976
DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976 
 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976
 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976
 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976
 DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976
DI CAVALCANTI = Rio de Janeiro-RJ, 1897-1976

HUMOR



 







VÍDEO = Quinteto Violado


VOLTAIRE


MÁRIO BENEDETTI


POESIA


SOLANO TRINDADE
RECIFE-PE  =  1908-1974
 
 


Nem Só De Poesia Vive O Poeta
 

 

“Nem só de poesia vive o poeta
há o “fim do mês”
o agasalho
a farmácia
a pinga
o tempo ruim, com chuva
alguém nos olhando
policialescamente
De vez em quando
um pouco de poesia
uma conta atrasada
um cobrador exigente
um trabalho mal pago
uma fome
um discurso à moda Ruy
E às vezes uma mulher fazendo carinho
Hoje a lua não é mais dos poetas
Hoje a lua é dos astronautas.”

 

POESIA


CRUZ E SOUZA
FLORIANÓPOLIS-SC  =  1861 / 1898 

 

Longe De Tudo

 
 

É livres, livres desta vã matéria, 
longe, nos claros astros peregrinos 
que havemos de encontrar os dons divinos 
e a grande paz, a grande paz sidérea.
 

Cá nesta humana e trágica miséria, 
nestes surdos abismos assassinos 
teremos de colher de atros destinos 
a flor apodrecida e deletéria.
 

O baixo mundo que troveja e brama 
só nos mostra a caveira e só a lama, 
ah! só a lama e movimentos lassos...
 

Mas as almas irmãs, almas perfeitas, 
hão de trocar, nas Regiões eleitas, 
largos, profundos, imortais abraços!