O S M A
N L I N S
VITÓRIA DE SANTO ANTÃO-PE =
1924-1978
O Vitral
Desde muito, ela sabia que o
aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis
semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e
convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de
apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para
sempre os cânticos.
- Ora... Temos tantos... -
respondera o homem. - Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que
retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o
indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e
ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera
grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer... (A
voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto).
- Suas tolices, Matilde... Quando
é isso?
Como se a idéia a envergonhasse,
ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. - No dia
vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração -
interrompera o esposo. - Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e
primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao
deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras purificara-se da ironia e as
repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe
advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de
alegrias e o receio de não as obter.
Agora, ali estava o domingo,
claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não
com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço
questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar
esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.
Abriu a porta, saíram. Flutuavam
raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o
braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como
se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco,
uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher
principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa,
cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e
sóbria, ela verificou exultante que o retrato não ficaria vazio: a
insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. - Hoje
eu queria ser menina.
- Você é.
A afirmativa podia ser uma
censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu
forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que
o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria,
assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre
estaria ausente.
Mas quem poderia assegurar,
refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de
tudo o que naquele instante sentia; e que sem ele o mundo e suas belezas não
teriam sentido?
Estas perguntas tinham o peso de
afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
- Aproveite - aconselhou ele. -
Isso passa.
- Passa. Mas qualquer coisa disto
ficará no retrato. Eu sei.
As duas sombras, juntas,
resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
- Não é possível guardar a mínima
alegria - disse ele. - Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na
esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas,
perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo que fluíam com força através
delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e
sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera
que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao
julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e
desapareça” - pensava. – “Eu o vivi. Eu o estou vivendo".
Sentia que a luz do sol a
trespassava, como a um vitral.
(“Os
Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”)
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