segunda-feira, 11 de setembro de 2017

CONTO = Millôr Fernandes



A Mensagem

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo: 

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?

RIO DE JANEIRO-rj = 1923-2012

POESIA = Odilon Nestor



A Seca



Todo esse campo agora abandonado
queimou do sol a pólvora candente!
Já de verde não tinge a grama olente,
secaram fontes, e morreu o gado!

O céu não chora o orvalho suspirado;
nem sombra existe na planície ardente!
Ninhos sem ave, habitações sem gente...
quanta gente sem pão, por todo o lado!...

E enquanto o vento cálido rugita,
e na fúria cruel, ríspido, agita
o esqueleto das árvores crestadas,

Faminto e nu, em retirada informe,
vê-se ir além descendo um povo enorme,
a pedir e a morrer pelas estradas!...

ODILON NESTOR

TEIXEIRA-PB = 1874-1968

CONTO = Humberto de Campos



Solução


    Curvado sobre a mesa onde redigia penosamente um bilhete à amante, o bacharel  Anastácio não ouvia as passadas da mulher, que, no andar superior, se vestia para   sair. Estavam em divergência há dois dias. De vez em quando a discussão estalava,  trocando-se palavras, que atingiam o alvo e ricocheteavam com a mesma violência.
     De repente, um perfume doce, de Royal Begonia, espalha-se pelo gabinete. E enquadrando-se na moldura da porta, abotoando nervosamente as luvas, a figura mundana, acentuadamente chic, de Dona Vivi.
     Não é alta, nem baixa. Clara, olhos negros, boca rasgada, de dentes magníficos, é o tipo comum da raça. Os braços finos e brancos, descem, nus, como duas hastes de lírio, desde a confluência do corpo. Calça, no máximo, 34, e os sapatinhos, bicando as flores vermelhas do tapete azul, são como dois beija-flores sugando a mesma roseira.
    De pijama, a cabeça curvada, Anastácio parece mais uma trouxa sobre uma cadeira do que um animal vivo. Não se move. Se se erguesse, toda a gente lhe veria a altura incomum, o nariz cumprido, o rosto longo e estúpido, os defeitos, em suma, que ele, como as serpentes, disfarça quando se enrodilha.
    Fisionomia de indignação, as narinas batendo como as asas de uma pequena borboleta, Dona Vivi estaca, a dois passos do marido.
   - Pronto; vou sair, - informa, sem delicadeza.
   - Boa viagem, - responde o rapaz, sem voltar-se.
   Dona Vivi morde, nervosa, o beiço vermelho.
   - Preciso de duzentos mil réis, - adianta.
   Um risinho canalha do marido dá-lhe um tremor de indignação.
   - Se você não me der - explode, - terei de pedir a outro homem!
   A essas palavras Anastácio volta-se, de súbito, na cadeira. A tempestade vai, com certeza, estalar. Vivi encolhe-se, como se já estivesse sentindo na cabeça, esmigalhando-lhe o chapéu, os punhos de ferro do marido. Enroscaram-se os dois: ela apavorada, ele, indeciso.
   - Queres saber de uma coisa, Etelvina? - diz, ao fim de um instante.
   E adoçando a voz:
- Arranja quatrocentos. Eu também preciso de duzentos...

HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886-1934

domingo, 27 de agosto de 2017

HUMOR














GRANDES PINTORES = George Grosz

 GEORGE GROSZ = Alemanha, 1893-1959











GEORGE GROSZ = Alemanha, 1893-1959

PENSAMENTOS = Diversos







CONTO = Humberto de Campos

O sapateiro

Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.
Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:
‒ Sabes, Manoel, que é que eu queria?
‒ Que é? ‒ indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.
‒ Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
‒ Que tolice, Clotilde! Tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
‒ Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz trêmula:
‒ Olha, Manoel, o couro... espicha!

HUMBERTO DE CAMPOS

MIRITIBA-MA = 1886-1934