O Cemitério
Extraído
do site Biblio
Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente
aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na
estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se
olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a
repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também
repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres
e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao
nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.
Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e
inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis
extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas – coisas brancas e
delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas,
cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um nome
ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas;
não as encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo
ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive
uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada
por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e
pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas
vontades, a lutar…
Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais
dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do
soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade
e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.
Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num
túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que
a rematavam pretensiosamente.
Nos cantos da lápide, vasos com flores
de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da base da
capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se
estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase
exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente
que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios
túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos
a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.
Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas
eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para
morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve
existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e
fugaz.
Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu
que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade – eu meditar como um
cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me
infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a
elas?
Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas
e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o
pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por
um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos…
Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma,
viva, que me falava.
Com que surpresa, verifiquei isso.
Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos,
despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os
figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do
cemitério! Era curioso.
E, por mais que procurasse explicar, não pude.
LIMA BARRETO
RIO DE JANEIRO-RJ = 1881-1922
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