A Viajante
(Rubem Braga, in “A
Borboleta Amarela”)
Com
franqueza, não me animo a dizer que você não vá.
Eu, que
sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma
casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que
fique.
Em minhas
andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando
outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta
brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às
vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes)
estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem
melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não
chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um
instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e
mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste,
mas passou.
Apenas
quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera
e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que
a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite,
na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente
que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena
multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternas e fatais e,
de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação
é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é
feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade
abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que os
das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São
aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de
repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como
velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e
docemente, coisa sua.
Mas há
também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de
solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de
gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro
antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde –
torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa
mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam
com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria
dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como
bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da
cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes
desconhecidos com um tédio cruel.
Boa
viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por
tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.
RUBEM BRAGA
CACHOEIRO
DO ITAPEMIRIM-ES = 1913-1990
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