Canção de Homens e
Mulheres Lamentáveis
(9/10/1964)
Esta noite... esta
chuva... estas reticências. Sei lá.
Quem seria capaz de
abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar,
o rosto?
Quem seria capaz de
contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:
— Estou me sentindo
assim, assim, assim...
A humanidade está
necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as
mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de
mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens
raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas,
receosos de pagar com os quefazeres do sexo.
Nesta noite, com esta
chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas
quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o
seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não,
não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez
(dela). Não há diferença.
E por que você não se
transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita?
Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um
soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que
simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso
o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um
sócio do Country".
Há poucos minutos, em
meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de
escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria
desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente
pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é
burlesca.
Uma pergunta, que não
tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do
amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.
Ontem à noite,
voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela
primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o
porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
— Que é que houve? O
senhor está mais velho?
Tirei os óculos e,
fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:
— O que é que houve?
De ontem para cá, o senhor envelheceu.
Tinha pensado que,
sem os óculos...
Não estou escrevendo
para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e
isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia
escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.
Só há uma vantagem na
solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para
quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
ANTÔNIO MARIA
RECIFE-PE = 1921-1964
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