domingo, 30 de outubro de 2016
POESIA = Gouveia Marinho
O l i n d a
Para Alcindo Pedrosa
27-12-1967
Colinas... Coqueirais... Barcos bojando o pano,
entre o verde do mar e o azul do firmamento,
Abres as tuas largas portas para o oceano,
ressoas no ressoar dos búzios e do vento.
O que de longe vem teu fascínio tirano
atrai, prende e escraviza aos poucos, lento e lento.
E, cego adorador de tal cegueira ufano,
aos teus encantos rende o culto mais atento.
Fatigada da luz cambiante em que cintilas
desces o véu da noite... e, é lendária cidade
de festivas manhãs e de noites tranquilas,
é de se ver, ao luar que cai de etéreas plagas
para te agasalhar num manto de saudade,
e teu quieto dormir ao flébil som das vagas.
GOUVEIA MARINHO
LUIZ TAVARES DE GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE = 1901-1983
POESIA = Raimundo Correia
Último Porto
Este o país ideal que em sonhos
douro;
Aqui o estro das aves me
arrebata,
E em flores, cachos e festões,
desata
A Natureza o virginal tesouro;
Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Fulgura; e, na torrente e na
cascata,
A água alardeia toda a sua prata,
E os laranjais e o sol todo o seu
ouro...
Aqui, de rosas e de luz tecida,
Aqui, de rosas e de luz tecida,
Leve mortalha envolva estes
destroços
Do extinto amor, que inda me
pesam tanto;
E a terra, a mãe comum, no fim da vida,
E a terra, a mãe comum, no fim da vida,
Para a nudeza me cobrir os ossos,
Rasgue alguns palmos do seu verde
manto.
RAIMUNDO CORREIA
MARANHÃO,
1859-1911
CONTO = Antônio Torres
Por Um Pé De Feijão
Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.
Até me
esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora
dava gosto trabalhar.
Os pés de
milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de
feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda
a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum,
uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?
E assim
foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós,
os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes
para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma
semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão
e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou
quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam
que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.
No dia
seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para
mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu
pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela
disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um
ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo.
Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se
arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no
fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no
comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia
desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão
para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma
língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
Durante
uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.
E eu vi os
olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos
com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:
- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
À tardinha
os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns
pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do
avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos
atormentava um bocado.
Fui o
primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da
porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era
tudo. Quando voltei, papai estava falando.
- Ainda
temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos
o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar,
despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis,
mas deixa os dedos.
E disse
mais:
- Agora
não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O
velho está certo.
Eu já
sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de
feijão.
ANTÔNIO TORRES
SÁTIRO
DIAS-BA = 1940
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