domingo, 3 de julho de 2016

CRÔNICA = Flávio Guerra



Farmácias De Antigamente
(Guerra, Flávio. Crônicas do velho Recife. p.35-36)
[1972]

Houve tempo no velho Recife em que a medicina homeopática teve muito prestígio. Tinturas, glóbulos, águas chegaram a inspirar enorme confiança às pessoas doentes e seus familiares.
Conforme a moléstia empregava-se o acônito, a beladona, a ipecaconha, a noz-vômica, o eucalipto, as águas especiais de fórmulas indianas ou indígenas, etc. Um tal doutor Casanova, por exemplo, anunciava em 1860 que em sua farmácia, na rua das Cruzes (hoje Diário de Pernambuco), número 30, encontrava-se "um sortimento volumoso de medicamentos em tinturas e glóbulos e os mais novos e bem preparados elementos homeopáticos".
Ficou célebre em todo o Nordeste, e ainda hoje existe, embora modestamente, uma farmácia com o seu nome, o homeopata recifense Olegário Ludgero Sabino Pinho, que freqüentava constantemente os grandes centros europeus, de lá trazendo para sua procurada botica, na antiga Camboa do Carmo, os mais novos elementos da homeopatia. Enquanto nos princípios do nosso século ganhou muita fama o homeopata Militão Bivar, vendendo ervas e águas numa farmácia localizada em um primeiro andar na rua da Aurora.
No tempo em que iam aparecendo as primeiras farmácias da cidade, até os fins do século XIX, e simplesmente chamadas de boticas, foi seu pioneiro um francês chamado Pierre Rouquyarol, que fundou na antiga rua dos Judeus (depois, com reformas, transformada na rua do Bom Jesus) a muito conhecida Botica Francesa, que resistiu até cerca uns dez anos passados, quando foi destruída por um incêndio.
Velhas farmácias onde predominava a manipulação do remédio em fórmulas feitas pelos médicos. O tempo das injeções, dos comprimidos, dos analgésicos, dos remédios fabricados em série nas fábricas, ainda não havia chegado. E o usual era a manipulação do medicamento no fundo das farmácias, de acordo com a fórmula médica dos canhés, das poções, dos purgantes de maná-e-sena, das jalapas para as congestões (hoje se chama derrame cerebral) e assim por diante.
Uma presença inconfundível na velha cidade. Nos balcões largos se viam invariavelmente duas ou três grandes ânforas de vidro claro, cheias de álcool colorido de verde, amarelo, encarnado ou azul. Era a marca inalterada das velhas farmácias. Nenhuma, nenhuma mesmo, até as mais modestas, que só podiam oferecer um vidro colorido, deixava de se apresentar assim, com as grandes ânforas no seu balcão de frente.
E por trás delas o farmacêutico-prático, um médico em miniatura, conhecedor a fundo das dosagens certas postas nas receitas, dos quininos, do agrião, do bicarbonato, do sulfato de sódio e outros alcalóides e produtos químicos-farmacêuticos do tempo. Atendia com muito carinho a quem o procurasse:
- Seu Benevides, mamãe mandou pedir um remédio para o Juquinha, que amanheceu vomitando muito...
E logo ia o caché indicado ou a poção aplicável, com a clássica recomendação:
- Diga a Dona Nanu que se ela não melhorar mande chamar o doutor Bandeira.
Mas na mor das vezes o remédio dava certo.
Contudo, até isso foi desaparecendo da poesia recifense. Hoje não há mais botica. O farmacêutico sumiu. Só aparecem as drogarias ou as grandes farmácias. Não mais se vêem os grandes vidros coloridos nos balcões, e seus caixeiros são iguais aos das lojas de bijuterias, tecidos, etc. Vendem uma caixa de injeção, um envelope de comprimido, um vidro de remédio importado com a mesma disposição e serenidade com que venderia um corte de tecido, um carretel de linha, meio metro de elástico. São mecânicos. Desconhecem a importância e a utilização terapêutica do que vendem. São bem diferentes dos antigos farmacêuticos, aqueles que Mário Sette tão bem analisou na figura humana de Seu Candinho da Farmácia.

FLÁVIO GUERRA
RECIFE-PE, 1910-1989

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