Assombrações
Existem uns amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando
aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para
seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond
de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho
de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem
devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem.
Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de
improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio,
uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece:
era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma
leitura, ao escovarmos os dentes, e até na hora do amor. A gente pode estar
conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele
olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje na nossa perna
tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa
conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta,
sensível, do mesmo modo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma
chinelada de mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem
se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de
folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da
cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura farra de
assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria,
independentemente de convite ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua
visita-relâmpago, muda ou falante, e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa
trêmula, temerosa de desamor: "Não sou mais virgem" - quando isso
tinha importância. Outra, cobrando: "Você não assume." Outra, no
escuro: "Quem é você?" Amores de outro mundo não se sentem obrigados
a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se entremostram.
Alguns perdem a viagem, e nos assaltam só com uma sensação, um nome,
umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que
morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que
se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em suas
fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada.
De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção,
se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e
resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer:
são desejos, frustações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada
ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Nada ficou por
explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar,
alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão
satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais!
São borboletas: passam, enfeitam com algumas cores, vocejam e partem. Se deixam
alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG = 1936
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