domingo, 12 de junho de 2016
CRÔNICA = Ivan Ângelo
Assombrações
Existem uns amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando
aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para
seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond
de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho
de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem
devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem.
Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de
improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio,
uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece:
era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma
leitura, ao escovarmos os dentes, e até na hora do amor. A gente pode estar
conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele
olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje na nossa perna
tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa
conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta,
sensível, do mesmo modo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma
chinelada de mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem
se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de
folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da
cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura farra de
assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria,
independentemente de convite ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua
visita-relâmpago, muda ou falante, e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa
trêmula, temerosa de desamor: "Não sou mais virgem" - quando isso
tinha importância. Outra, cobrando: "Você não assume." Outra, no
escuro: "Quem é você?" Amores de outro mundo não se sentem obrigados
a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se entremostram.
Alguns perdem a viagem, e nos assaltam só com uma sensação, um nome,
umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que
morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que
se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em suas
fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada.
De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção,
se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e
resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer:
são desejos, frustações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada
ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Nada ficou por
explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar,
alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão
satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais!
São borboletas: passam, enfeitam com algumas cores, vocejam e partem. Se deixam
alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG = 1936
POESIA = Gouveia Marinho
Espelho, Meu Amigo
Ponho-me a refletir, nesta hora mansa
da
minha tarde. Faço sessenta anos.
O
meu corpo se curva, a alma se cansa
ao
peso esmagador dos desenganos.
Examino,
um por um, todos os danos
que
o tempo causa em mim enquanto avança.
Ao
embate de golpes desumanos,
já
me foge a ambição, morre a esperança.
Um
amigo que encontro diz, contudo,
que
estou “ficando moço”... Mas não quero
convir
na generosa afirmativa.
Consulto
o espelho. E me revela tudo
o
espelho, meu amigo mais sincero,
de
uma sinceridade pungitiva...
GOUVEIA MARINHO
LUIZ TAVARES DE
GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE (1901-1983)
CONTO = Humberto de Campos
(Paródia a uma sátira de Emílio de Menezes)
As
nuvens começavam a tomar uma cor arroxeada, anunciando o fim do crepúsculo e o
inicio de uma noite soturna, quando alguém bateu, medroso, à luminosa porta do
Céu.
-
Quem bate? - gritou, de dentro, São Pedro, arrastando as suas alpercatas de
couro e tilintando, trêmulo, a sua enorme penca de chaves.
-
Sou eu! - respondeu de fora o recém-chegado.
Aberta
a portinhola do parlatório, informou o retardatário haver sido despachado da
vida naquele dia, com destino à mansão dos justos, onde devia, portanto, ser
admitido.
-
Aqui? - observou o apostolo, espantado. - Aqui. não. Todas as pessoas que
tinham de entrar hoje, já entraram. Não falta mais nenhuma.
E
bondoso:
--
Não será engano seu, meu filho? Você não terá sido despachado para o
Purgatório?
O
peregrino admitiu a hipótese de uma confusão, e, saltando de nuvem em nuvem,
como quem salta de rochedo em rochedo, foi ter à porta de fogo do Purgatório,
onde bateu.
-
Quem vem lá? - trovejou um anjo, escancarando, com um gancho, a rubra fornalha
das penitências.
O
desventurado deu o seu nome, e, momentos depois, reabria-se o forno.
-
Há engano na direção, camarada! - informou o guardião, soprando, severo, a sua
vermelha espada de chama. - O seu lugar não será no Inferno? Aqui, é que não é.
Não consta nada sobre a sua pessoa!
E,
fechando a fornalha, deixou-o na amplidão, tristonho, solitário, abandonado,
tendo aberto, apenas, à sua frente, o caminho escuro do Inferno. Resolvido a
cumprir o seu destino, tomou o infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à porta
da caverna formidável.
-
Quem é? - rugiu, de dentro, uma voz que parecia um trovão.
Tremendo
de pavor, o mísero deu o seu nome, e esperava, já, o instante de ser
precipitado nas enormes caldeiras ferventes, quando o portão monstruoso se
abriu, dando passagem aos chavelhos de ferro de Belzebu.
-
Quem o mandou para cá? - indagou o bruto, acendendo os olhos.
-
A mim? - gemeu o desventurado. - Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me que não era
lá. Fui ao Purgatório, e informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui, por força.
O
Diabo meditou um instante, consultou umas chapas de ferro incandescente que
estavam próximas, e protestou, firme:
-
Aqui, também, não é!
-
Não?
-
Não; absolutamente! - tornou o Capeta. - O seu lugar deve ser mesmo no Céu. O
Pedro está muito velho, já, e, com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte lá!
Um
momento depois, estava o desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.
-
Outra vez? - observou São Pedro, paciente.
-
Outra vez, sim, - confirmou, grosso, a vítima. - O meu lugar não é no
Purgatório, não é no Inferno; deve ser, forçosamente, aqui. Veja bem!
O
apóstolo enforquilhou os óculos no nariz, abriu o livro em que estavam
registrados os nomes das almas, folheou, folheou, folheou, e, de repente,
voltando-se, indagou:
-
Diga-me uma coisa: onde foi que você morreu?
-
Eu? Na Santa Casa do Rio de janeiro! - respondeu a vítima.
E
o chaveiro, escancarando a porta:
-
É aqui mesmo, entre!
E
mostrando o livro:
-
A culpa não foi minha, filho! Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!
E
aborrecido: - Esta Santa Casa tem me estragado a escrita!...
HUMBERTO
DE CAMPOS
MIRITIBA-MA
= 1886 / 1934
FRASES DE NELSON RODRIGUES
O ônibus
apinhado é o túmulo do pudor.
O marido não
deve ser o último a saber.
O marido não deve saber nunca.
Amar é dar razão
a quem não tem.
Amar é ser fiel
a quem nos trai.
Dinheiro compra
tudo, até amor verdadeiro.
Com sorte você
atravessa o mundo,
sem sorte você não atravessa a rua.
sem sorte você não atravessa a rua.
O Natal já foi
festa, já foi um profundo gesto
de
amor. Hoje, o Natal é um orçamento.
Assinar:
Postagens (Atom)