Bandeira Branca
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito
diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No
mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de
dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos
desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um mantinha de
confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de
jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano
seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de
egípcia. Tentaram recomeçar o mantinha, mas dessa vez as mães reagiram e os
dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem
uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu? — Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério
de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do
ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era
sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma
tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando
com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido
de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio
e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E,
quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e
saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez
as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um
casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na
hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha
perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o
tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar
por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes
tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de
encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da
sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve
que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo
lavado. O que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a
alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube
— e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia
indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
.Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso
mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no
Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda,
finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos.
Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse
“Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu
uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que
levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia
de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado
pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da
vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo
o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão
de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente
burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças
curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer
foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda
começou a tocar Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e
amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela,
meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para
dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e
encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval.
Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para
visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase
não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda,
nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que
ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval
que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela
nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro
estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele,
como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na
fantasia de falsa bávara…
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou
ela. — Esqueci — mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se
separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram
em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil… E a todas essas ele
pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida,
Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será
apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro
aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936
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