domingo, 25 de outubro de 2015
CONTO = Leon Eliachar
O Pileque
Airton saiu da boate cambaleando, não viu quando um
automóvel quase o pegou. Não viu, mas ouviu: - Sai da frente, ó palhaço!
Riu sozinho, porque nem levou susto. Olhou para o
alto, viu uma porção de janelas iluminadas, como se fossem manchetes da solidão
que domina Copacabana, às quatro da madrugada. Queria ir pra casa, mas não se
lembrava onde morava. Seus amigos quiseram colocá-lo num táxi: - Deixa que sei
ir sozinho.
Veio andando, andando, sem rumo certo, duas moças o
abordaram:
- Esta sem sono, meu bem?
Airton disse um palavrão, ouviu dois, saiu
resmungando, esbarrou num guarda: - Tem fogo ai, o meu chapa?
O guarda acendeu seu cigarro, aproveitou pra filar
um, tentou puxar um papo mas Airton preferiu continuar andando. Agora o dia já
estava clareando, o sol vermelho esticava as sombras de algumas pessoas que
começavam a sair e ele ainda nem tinha voltado. Sentou-se no degrau de um
edifício, chegou um homem pra reclamar, dizendo que era contra o regulamento.
Airton achou graça do regulamento, porque o homem era um lavador de automóveis
e estava complemente nu. Levantou-se, sem discutir, levou de sobra os respingos
da mangueira, mas não perdeu a pose: - Quanto é a lavagem?
Continuou andando, entrou num boteco: - Média, pão e
manteiga .
Comeu devagarinho, pagou, misturou-se com a multidão
de homens e mulheres apressados que tentavam condução para o trabalho.
Sentiu-se diferente dos outros, quis ficar com pena deles, mas acabou com pena
de si mesmo, quando percebeu que estava com um dia de atraso: os outros já
estavam vivendo o dia seguinte e ele ainda estava no ontem .
- Táxi! Táxi!
Saltou na porta de casa, decidido de que este seria o
seu último pileque. Abriu a porta com cuidado, entrou devagarzinho, sem fazer o
menor ruído. A mulher já estava na cozinha, preparando o café das crianças: - É
você, Airton?
Não teve outro jeito: - Sou eu.
Tive de fazer serão novamente, acabei num bar com os
amigos, juro que foi a ultima vez, meu bem .
A mulher não disse uma palavra, deu-lhe um copo de
leite:
- Acho bom você dormir um pouco, deve estar muito
cansado.
Ele passou pelo quarto dos meninos, deu um beijo na
testa de cada um. O menorzinho acordou, bocejando: - Você já vai trabalhar,
papai?
Sentiu vergonha de ser marido, de ser pai, de ser
chefe de família. Retirou-se para o seu quarto, vestiu o pijama, cerrou as
cortinas, para que a escuridão envolvesse o seu drama. Ficou pensando em Nina,
sua amante, comparou-a com a mulher. Há três anos que a conhecera e há duas
semanas que havia decidido romper, definitivamente, para salvar o seu lar. Mas
não conseguia esquecê-la, dai ter apelado para a bebida. Saia sozinho, todas as
noites, voltava de madrugada, não sabia sequer se a mulher aceitava suas
desculpas ou se o aceitava assim mesmo como era, porque o amava muito. Não
conseguia dormir, não conseguia trabalhar, não conseguia mais nada. Deitava-se
às oito da manhã, levantava-se as duas. Há quinze dias não almoçava nem jantava
em casa e sua família não merecia isso. No escritório, resistia a tentação de
uma reconciliação com "a outra": - Diz que não estou.
À noite era um desajustado, um homem
incompatibilizado consigo mesmo, tentando lavar com a bebida um passado ainda
recente. Entrava nas boates, juntava o seu drama a outros dramas semelhantes,
na efervescência do álcool. Todos sorriam, mas ninguém levava o sorriso pra
casa. Pior que o cansaço, a insônia. Levantou-se, trocou novamente de roupa,
foi tomar café com a mulher: - Você não vai dormir, meu bem?
Sentiu-se forte com a doçura e a compreensão da
mulher:
- Não tenho sono, preciso decidir um negócio muito
importante hoje.
Tomaram café, ele saiu apressado. À noite, trouxe
balas para os filhos e flores para a mulher. Jantaram juntos, com luz de vela.
De madrugada, ao lado de seis garrafas de champanha vazias, os dois estavam
caídos, também vazios. Acordaram quase juntos, com o primeiro raio de sol. Ela
apertou sua mão, com um sorriso feliz, ele disse, sem virar o rosto do chão: -
Meu Deus, já é dia claro, tenho de voltar pra casa!
LEON ELIACHAR
* CAIRO (Egito), 1922 = U RIO-RJ, 1987
PÓESIA = João Cabral de Melo Neto
O Cão Sem Plumas
A
cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O
rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele
rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia
dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
de lodo e ferrugem.
Sabia
da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele
rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
RECIFE-PE, 1920-1999
CONTO = Luis Fernando Veríssimo
Bandeira Branca
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito
diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No
mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de
dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos
desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um mantinha de
confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de
jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano
seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de
egípcia. Tentaram recomeçar o mantinha, mas dessa vez as mães reagiram e os
dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem
uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu? — Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério
de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do
ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era
sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma
tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando
com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido
de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio
e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E,
quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e
saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez
as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um
casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na
hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha
perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o
tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar
por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes
tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de
encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da
sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve
que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo
lavado. O que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a
alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube
— e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia
indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
.Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso
mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no
Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda,
finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos.
Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse
“Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu
uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que
levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia
de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado
pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da
vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo
o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão
de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente
burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças
curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer
foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda
começou a tocar Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e
amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela,
meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para
dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e
encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval.
Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para
visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase
não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda,
nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que
ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval
que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela
nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro
estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele,
como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na
fantasia de falsa bávara…
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou
ela. — Esqueci — mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se
separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram
em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil… E a todas essas ele
pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida,
Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será
apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro
aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936
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