domingo, 27 de setembro de 2015
POESIA = Gregório de Matos
Senhora
Dona Bahia
"Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
e é que, quem o dinheiro nos arranca,
nos arranca as mãos, a língua, os
olhos."
"Esta mãe universal,
esta célebre Bahia,
que a seus peitos toma, e cria,
os que enjeita Portugal"
"Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar
por quem de mim não tem mágoa?
verdades direi como água
porque todos entendais,
os ladinos e os boçais,
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?"
GREGÓRIO
DE MATOS
SALVADOE-BA = 1636-1696
CRÔNICA = Luís Fernando Veríssimo
“Incrível” e “inacreditável” querem dizer a mesma coisa — e não querem. “Incrível” é elogio. Você acha incrível o que é difícil de acreditar de tão bom. Já inacreditável é o que você se recusa a acreditar de tão nefasto, nefário e nefando — a linha média do Execrável Futebol Clube.
Incrível é qualquer demonstração de um talento
superior, seja o daquela moça por quem ninguém dá nada e abre a boca e canta
como um anjo, o do mirrado reserva que entra em campo e sai driblando tudo,
inclusive a bandeirinha do córner, o do mágico que tira moedas do nariz e
transforma lenços em pombas brancas, o do escritor que torneia frases como se
as esculpisse.
Inacreditável seria o Jair Bolsonaro na presidência da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara em substituição ao Feliciano, uma
ilustração viva da frase “ir de mal a pior”.
Incrível é a graça da neta que sai dançando ao som da
Bachiana nº 5 do Villa-Lobos como se não tivesse só cinco anos, é o ator que
nos toca e a atriz que nos faz rir ou chorar só com um jeito da boca, é o
quadro que encanta e o pôr de sol que enleva.
Inacreditável é, depois de dois mil anos de civilização
cristã, existir gente que ama seus filhos e seus cachorros e se emociona com a
novela e mesmo assim defende o vigilantismo brutal, como se fazer justiça fosse
enfrentar a barbárie com a barbárie, e salvar uma sociedade fosse embrutecê-la
até a autodestruição.
Incrível, realmente incrível, é o brasileiro que leva
uma vida decente mesmo que tudo à sua volta o chame para o desespero e a
desforra.
Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de
médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil,
e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa,
venha justamente de associações médicas.
Incrível é um solo do Yamandu.
Inacreditável é este verão.
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936
POESIA = João Cabral de Melo Neto
O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
RECIFE-PE = 1920-1999
CRÔNICA = Rubem Braga
O Padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções,
ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas
não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma
coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto
não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o
trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão
dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido,
que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem
modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do
apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores,
avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia
de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que
aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de
uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma
voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o
atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro".
Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se
despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando
com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os
padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de
jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía
já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho
da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele
tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa,
além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou
artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada
lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre
todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!" E assobiava pelas escadas.
RUBEM BRAGA
CACHOEIRO DO
ITAPEMIRIM-ES,1913-1990
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