domingo, 30 de agosto de 2015

CONTO = Artur Azevedo




Ardil


 - A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.
- O visconde ainda dorme? - Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.
- Posso falar sem receio? - Estamos completamente sós.
Houve uma pequena pausa.
- Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?
- Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça... Em todo caso, fazem padecer. - A quem o dizes!
- Não durmo há duas noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...
- Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.
- Fale mais baixo. - Não tenhas medo.
- Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes...
- Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.
- Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais...
Houve outra pausa.
- Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!
- Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.
- Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...
- Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos! E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.
- Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...
- Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...
- Uma verdadeira sinecura. - Mas... que tem isso?
- Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.
- Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?
- E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!
- Mas, por fim das contas, que devo fazer?
- Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.
- Não sei latim.
 - Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se comprometer. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo - o seu cavalheirismo pelo menos - o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.
- Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?
- A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.
- Senta-te, e escreve o te vou ditar.
No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:
“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdôo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência.
Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. - Sua quand même, L.
Post-scriptum - Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinqüenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. - Sua L.”
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!

ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908

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