Ingenuidade
O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não
porque ela não tivesse todas as aparências de uma senhora honesta; desejava-a,
porque o marido, o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir
que o enganassem.
Quando, após quatro meses de. perseguições
incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito
atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um
encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em
casa dele também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus
trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai.
* * *
O nosso herói lembrou-se, afinal, de um
amigalhaço muito dado a cavalarias altas; foi ter com ele, expôs-lhe a situação
e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho.
- Tu compreendes! Não posso nem devo
levá-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria
abusar da sua inocência!
- Então a pequena é tão inocente assim?
- Se é! Não fala senão de pálpebras caídas,
e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!
- Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca
é o primeiro amante!
- Falas assim porque não a conheces.
- Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la
com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal,
número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te
servirá perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartão.
O Vaz foi à casa indicada e obteve o que
desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os
requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a
Ernestina poderiam entrar sem ser vistos.
* * *
No dia da entrevista, correu tudo às mil
maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela
depois, e lá se demoraram perto de hora e meia.
Por que tanto tempo? Por que uma virtude
não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência!
Arrependida de haver subido aquela escada
infame, a Ernestina resistiu quanto pôde.
- Não! Não! Não!... eu quero conservar-me
fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?...
O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu
como Pedro I, que era um bruto.
- E o Friandes?... e o meu pobre Friandes
que tem tanta confiança em mim?...
* * *
A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda
ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos:
- Então?, agradou-lhe o quarto?
- Muito e, se a senhora quisesse, eu
ficaria com ele só para mim.
- Ah!, isso não pode ser.
- Por quê?
- Porque há um cavalheiro e uma dama que
têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não
sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu.
- Bom.
O Vaz pagou generosamente a hospedagem e
saiu.
* * *
No dia seguinte lembrou-se que era sábado,
e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4
horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa
hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de
observação.
O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era
um velho com todas as aparências de respeitável.
A dama pouco se demorou: era a própria
Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz, que daquele momento em diante,
convencido de que o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das
mulheres.
ARTUR DE AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA - 1855 / 1908
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