domingo, 30 de agosto de 2015

VÍDEO = Orquestra Caravelli


POESIA = Alberto Da Cunha Melo




Morte Sob Contrato


Sua morte, sob encomenda,
ajustada a si como roupa,
não prêt-à-porter, contra entrega,
mas bala a bala, gota a gota,

era, no entanto, igual à vida
que antes viveu, sob a medida

da ordem, da métrica demência,
a que distribui a matança
de acordo com a procedência

e o cadastro da freguesia
da morte, a crescer todo dia.

ALBERTO DA CUNHA MELO
JABOATÃO DOS GUARARAPES-PE = 1942–2007

VÍDEO = Hugo Montenegro & Orquestra


HUMOR











POESIA IMAGEM = Pablo Neruda


CONTO = Artur Azevedo




Ardil


 - A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.
- O visconde ainda dorme? - Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.
- Posso falar sem receio? - Estamos completamente sós.
Houve uma pequena pausa.
- Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?
- Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça... Em todo caso, fazem padecer. - A quem o dizes!
- Não durmo há duas noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...
- Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.
- Fale mais baixo. - Não tenhas medo.
- Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes...
- Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.
- Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais...
Houve outra pausa.
- Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!
- Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.
- Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...
- Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos! E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.
- Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...
- Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...
- Uma verdadeira sinecura. - Mas... que tem isso?
- Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.
- Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?
- E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!
- Mas, por fim das contas, que devo fazer?
- Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.
- Não sei latim.
 - Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se comprometer. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo - o seu cavalheirismo pelo menos - o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.
- Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?
- A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.
- Senta-te, e escreve o te vou ditar.
No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:
“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdôo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência.
Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. - Sua quand même, L.
Post-scriptum - Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinqüenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. - Sua L.”
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!

ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908

POESIA = Gilberto Mendonça Teles



Olinda

Aos olhos de quem chega, sobre o sal
e o sonho das viagens incompletas,
e antes de tudo — e límpida — projetas
teus contornos de espuma e litoral.

Mais alto, o teu farol risca na cal
das brumas e do tempo outras secretas
ondulações que dormem inquietas
nos teus braços de espuma e litoral.

E ao mar, ao vento, aos peixes e veleiros
disputas, luminosa, os teus coqueiros
desenhados no azul, como sinal

de que sobre este mar que te domina
ergues teus olhos verdes de colina
e teus braços de espuma e litoral.



GILBERTO MENDONÇA TELES
BELA VISTA DE GOIÁS-GO = 1931
 

GRANDES PINTORES

 CHEN YIMING = China, 1951
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
 CHEN YIMING
CHEN YIMING = China, 1951

PENSAMENTOS = Diversos






PIADA



Papagaio congelado

Um dia, um sujeito ganhou de presente um papagaio.
O bicho era uma praga. Não demorou muito, logo se espalhou pela casa.
Atendia telefone.
Gritava e falava sozinho nas horas mais inesperadas.
Dava palpite nas conversas dos outros.
Discutia futebol.
Fumava charuto.
Pedia café, tomava, cuspia, arregalava os olhos, esparramava semente de girassol e cocô por todo lado, gargalhava e ainda gritava para o dono da casa: “Ô, seu doutor, vê se não torra faz favor!”
Uma noite, a família recebeu uma visita para jantar.
O papagaio não gostou da cara do visitante e berrou: “Vai embora, ratazana!”, e começou a falar cada palavrão cabeludo que dava medo.
Depois que a visita foi embora, o dono da casa foi até o poleiro. Estava furioso:
– Seu mal-educado, sem-vergonha de uma figa! Estou cheio! Agora você vai ver o que é bom pra tosse.
Agarrou o papagaio pelo cangote e atirou dentro da geladeira:
– Vai passar a noite aí de castigo!
Depois, fechou a porta e foi dormir.
No dia seguinte, saiu atrasado para o trabalho e esqueceu o coitado preso dentro da geladeira.
Só foi lembrar do bicho à noite, quando voltou para casa.
Foi correndo abrir a geladeira. O papagaio saiu trêmulo e cabisbaixo, com cara arrependida, cheio de pó gelado na cabeça.
Ficou de joelhos.
Botou as duas asas na cabeça.
Rezou.
Disse pelo amor de Deus.
Reconheceu que estava errado.
Pediu perdão.
Disse que nunca mais ia fazer aquilo.
Jurou que nunca mais ia fazer coisa errada, que nunca mais ia atender telefone e interromper conversa, nem xingar nenhuma visita.
Jurou que nunca mais ia dizer palavrão nem “vai embora, ratazana”.
Depois, examinando o homem com os olhos arregalados, espiou dentro da geladeira e perguntou:
– Queria saber só uma coisa: o que é que aquele franguinho pelado, deitado ali no prato, fez?