domingo, 12 de julho de 2015

CONTO = Dinah Silveira de Queiroz




Orgia

As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite:
 — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"?
 — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".
As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?
— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”.
Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:
— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."
Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"
O marido resolveu experimentar a mulher:
— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !"
Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.
As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais.
O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.

O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.


DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ
SÃO PAULO-SP = 1910-1982

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