Orgia
As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam,
devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite:
— "A senhora também hoje se levantou antes das
quatro"?
— "De certo, meninas. Que é que se vai fazer?
Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são
umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".
As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho
zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?
— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada,
vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu
queira”.
Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves,
não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta,
vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à
vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:
— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não
quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de
toda a comodidade."
Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: —
"Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"
O marido resolveu experimentar a mulher:
— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois".
— "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora
suspirou — já não é nada para mim !"
Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por
acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava
naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda
de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda
com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do
primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada.
Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de
comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um
vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se
rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo,
outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um
homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida,
um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada
era a rua das ousadias.
As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades.
Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As
aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto,
excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos
passantes joviais.
O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará
sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na
rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro
horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa,
íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.
O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.
DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ
SÃO PAULO-SP = 1910-1982
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