A Mulher Feia De Cada Um
Estamos vivendo preâmbulo de golpe, em que causas se
misturam, fronteira entre oportunismo político e moralismo exacerbado se dilui,
e as definições são impossíveis
Para-choques de caminhão têm sempre o que dizer, e
algumas das suas frases tornaram-se clássicas. Há declarações religiosas, num
tom de catequese ressentida (“Deus é maior do que você merece”). Há as frases
que tratam das agruras do casamento (“Se casamento fosse coisa boa, não
precisava de testemunha”) e das suas consequências indesejáveis (“Deus fez a
mãe e o Diabo fez a sogra”). Algumas são sobre o sexo (“Bom é mulher carinhosa
e embreagem macia”) e sobre as armadilhas do sexo (“Casamento que começa em motel
termina em pensão”), outras são exemplos de sabedoria prática (“Devagar se vai
ao longe… mas leva muito tempo”, “Cana dá pinga, pinga demais dá cana”, “Em
terra de sapo mosquito não dá rasante” etc) e outras apenas confessionais
(“Devo tudo à minha mãe, mas estamos negociando”).
A minha frase de para-choque preferida é “Se me virem
abraçado com mulher feia, podem apartar que é briga”. Uma frase preconceituosa,
é claro. Se você for examiná-la de perto — o que é sempre desaconselhável com
qualquer piada — a frase é cruel. A mulher tem muitas maneiras de ser bonita
sem, necessariamente, ser vistosa. E há muitas razões para estar abraçado com
uma mulher feia sem que seja briga. O importante na frase é o que a mulher feia
significa para cada um. A mulher da frase, além de feia, é simbólica.
Representa todos os mal-entendidos que queremos evitar a nosso respeito. Ela é
a causa que nunca abraçaríamos, embora pareça que sim. Por exemplo: se me virem
participando de uma manifestação de rua de que também participe o Jair
Bolsonaro ou similar, com faixas pedindo a volta da ditadura militar, podem ter
certeza que, ou não sou eu ou entrei na manifestação errada. Os outros
manifestantes podem não se incomodar com a companhia, e sua decisão é
respeitável. Mas eu sei bem que mulher feia não quero do meu lado.
Acho que todo mundo deveria se preocupar com a mulher
feia que aparecerá na sua biografia, quando contarem a história destes tempos.
Estamos vivendo um preâmbulo de golpe, em que as causas se misturam, a
fronteira entre o oportunismo político e moralismo exacerbado se dilui, e as
definições são impossíveis — pelo menos definições claras e precisas como as de
um para-choque. Mas no futuro cada um terá de dizer se estava dançando ou
brigando com mulher feia.
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936
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