domingo, 26 de abril de 2015
CRÔNICA = Mário Sette
Os
Bombeiros
Os sinos começavam a tocar espaçada e
repetidamente. A princípio uma igreja só cujo toque era logo reconhecido pelos
moradores do bairro. Em seguida outra, mais outra. Por fim diversas. Umas
próximas. Umas distantes. Badaladas vagarosas, impertinentes, monótonas.
Todos contavam:
— Uma, duas, três, quatro, cinco... É
no Recife.
— Que nada, Marocas. É em São José.
Sete...
— Conte direito. Foram cinco.
Recontam e concordam em ser incêndio
na freguesia do Recife.
— É mesmo. Aonde será, minha gente?
Fora de Portas? Manezinho tem um armazém de algodão na rua de São Jorge.
As ruas se enchem de golpe. Correm
criaturas de todas as partes. Esvaziam-se casas e becos se os estivessem
espremendo. Quem cochila, acorda; quem come, pára; quem descansa, esperta; quem
conversa, cala-se. Vão todos ver o fogo. Uns receosos, a maioria por folguedo.
Na vida calma do Recife um incêndio era uma novidade, um divertimento, um ponto
de maledicências, de namoros, de chamegos, de conquistas.
Acudiam tipos de todas as classes,
cores, idades e sexos.
O armazenário, o lojista, o polícia, o
bilontra, o farrista, o moleque, a família, a mulher-dama, a criada, o
geladeiro, a boleira...
Rumores de botas, chinelos, tamancos
nas calçadas...
E os sinos a insistir no toque de
rebate.
Agora, a corneta dos quartéis.
— É no 14.
— E na cavalaria também. Repare o
clarim.
Correrias. Uma velha, na janela,
indaga de um transeunte:
— Já soube aonde é o fogo, meu senhor?
— Na caixa d’água...
Outro transeunte, mais atencioso,
explica:
— Ouvi dizer que é um armazém de
álcool do cais do Apolo.
— Minha Nossa Senhora! Logo álcool!
Vai tudo embora. E minha sobrinha Teté que mora na rua do Vigário. Vou rezar o Magnífica.
Avistam-se chamas por cima dos
telhados. Ouvem-se explosões. Sente-se o cheiro da fumaça.
De súbito uma campainha. Um tropel.
São os bombeiros. Vêm do cais do Capiberibe e trazem archotes. Eles mesmos
puxam as carretas com as bombas encolhidas, as escadas aos pedaços, a
ferramenta profissional. Correm de ponte afora.
— Coitados! Quando chegarem lá já
estão cansados.
— Deviam ter cavalos para puxar os
carros. Como no Rio.
Um velho, assistindo ao incêndio:
— Hoje inda há bombeiros. E no meu
tempo? Era o povo que ajudava a apagar. Cada um com seu balde indo encher no
chafariz mais perto. Uma vez ajudei a acabar com um, brabo, no beco da Cacimba.
Na casa de um fogueteiro, imagine. Eu era balanceiro da Alfândega.
— Por falar em Alfândega. Fogo danado
foi aquele outro dia lá, heim? Lambeu tudo. Até os torreões.
— Antigamente era o povo sozinho que
apagava. Depois começaram a auxiliar as bombas dos meninos do arsenal de guerra
e dos imperiais marinheiros. Sempre serviam. Hoje é uma beleza com esses
bombeiros.
De quando enquando um enorme estouro e
as labaredas se avivam. Paredes ruíam. O telhado abatera desde o começo. O povo
com medo não se aproximava. Reuniam-se todos nas imediações da ponte Buarque de
Macedo, do arco da Conceição ou mesmo no cais do Abacaxi, de outro lado.
A cavalaria rondava abaixo e acima de
rifle em punho.
Já havia quem fosse voltando às casas.
Negociantes mais sossegados por saber
que a desgraça não os atingira. Famílias saciadas de curiosidade. Pequenas
contentes do pretexto em umas olhadelas com os coiós. Rapazolas acompanhando as
moradoras do brejo...
E o comentário:
— Pobre do dono!
— Pobre?! Seguro de 200 contos!...
(Sette, Mário. Maxambombas
e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro, Casa do Estudante Brasileiro,
1958, p.103-105)
MÁRIO
SETTE
POESIA = Manuel Bandeira
O Menino Doente
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme... dorme... meu..
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho... "
E o menino dorme.
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme... dorme... meu..
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho... "
E o menino dorme.
MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE =
1886-1968
CONTO = Artur Azevedo
Paga Ou Morre!
O ano de 1864 foi assinalado no Rio de
Janeiro por duas calamidades notáveis: a chuva de pedras e a quebra do Souto.
O Souto era o mais acreditado e o mais
popular dos banqueiros havidos e por haver no Brasil; a sua casa inspirava uma
confiança absoluta, e não havia homem do trabalho que, avisado e previdente,
não houvesse lá depositado as suas economias.
Quando começaram a aparecer os primeiros
rumores sobre o mau estado das finanças do Souto, ninguém se importou com isso:
toda a gente encolheu os ombros. Supor naquele tempo que o Souto quebrasse era
o mesmo que acreditar na quebra do Pão de Açúcar. O banqueiro na sua casa da
Rua Direita não estava menos seguro que o famoso rochedo.
Mas os rumores sinistros foram num
crescendo inquietador, até que os mais incrédulos começaram a acreditar no que
se dizia: o Souto estava falido! Houve então a inevitável corrida.
A invasão dos franceses, a chegada do
príncipe regente, as águas do monte, a declaração da guerra do Paraguai, a
proclamação da República, a revolta de 6 de setembro, talvez não alvorotassem
tanto o espírito dos cariocas. Não se falava noutra coisa, a consternação era
geral, todos se lamentavam, choravam todos o seu dinheiro perdido, e a ninguém
aproveitava o ditado de que o mal de muitos consolo é.
Havia então nesta cidade um moço entre
vinte e cinco e trinta anos, que, sem pai nem mãe, sem ter tido a proteção de
ninguém, levado apenas por uma grande força de vontade e por um talento ainda
maior, conseguira formar-se em medicina, e sair da escola com um nome feito.
Pouco depois de formado casou-se, e a sua
união foi logo abençoada, como se dizia naquele tempo: nasceram-lhe dois filhos
de seguida.
Veio então ao médico o desejo natural de
possuir uma casa, e, para isso, começou a economizar quanto podia, conseguindo,
em 1864, ter reunidos vinte contos de réis na casa do Souto. Absorvido pela sua
clínica e pelos seus estudos, ele ignorava os boatos que corriam acerca da
insolvabilidade do banqueiro, de sorte que só veio ao conhecimento do fato
quando a bomba estava prestes a estourar.
O seu desgosto foi profundo. Aqueles vinte
contos representavam um sacrifício tremendo, porque, para ajuntá-los, ele se
privara de tudo, a si e a sua família.
Desesperado, correu ao Souto, que o mandou
entrar para um escritório onde trabalhava sozinho. Quando o banqueiro declarou
que não lhe era possível restituir os vinte contos, ele correu à porta,
fechou-a, guardou a chave na algibeira e, puxando um revólver, apontou-o contra
o outro, dizendo:
- Se não me dá imediatamente o meu
dinheiro, faço-lhe saltar os miolos! Paga ou morre!.
E aí está porque o Dr.... (com certeza
muitos leitores lhe sabem o nome) foi o único credor do Souto que em 1864
recebeu integralmente a importância da sua dívida. Perdeu apenas os juros.
Ele nunca mais fez uso do seu revólver; mas
o seu bisturi tornou-se ilustre.
ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA =
1855/1908
POESIA = Mário Quintana
Triste Encanto
Triste encanto das tardes
borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
A tarde pobre fica, horas
inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus...o frio que a pobrezinha sente!
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus...o frio que a pobrezinha sente!
Por que é que esses Arcanjos
neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
MARIO QUINTANA
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
MARIO QUINTANA
ALEGRETE-RS =
1906-1994
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